Na semana passada, um senhor de 78 anos dava entrada num hospital de Rio Branco, no Acre, vítima de atropelamento. O acidente poderia ser apenas mais um na desordenada cidade da Amazônia se o paciente com a bacia fraturada não fosse uma figura conhecida da história da devastação da floresta, o fazendeiro Darly Alves da Silva, condenado por mandar matar o líder seringueiro Chico Mendes. Darly, no leito 119 do hospital, logo após uma cirurgia, disse que o processo do assassinato ocorrido há 25 anos foi uma experiência “dolorosa”. “Crime nenhum compensa”, disse ele ao Estado no domingo. “Não desejo que ninguém sente na cadeira de réu para ouvir um processo”.
A entrevista ocorreu numa situação peculiar. Um filho dele acompanhou com irritação a conversa. O clima se tornava mais tenso nos momentos em que o fazendeiro falava do crime. Darly, no entanto, queria falar. Magro e voz firme, ele está lúcido. “Não era para eu ter morrido?”, perguntou, referindo-se ao atropelamento. “Sempre foi assim: eu caio e levanto, consigo sobreviver”.
Chico Mendes foi morto aos 44 anos com um tiro de escopeta calibre 22 no peito na noite de 22 de dezembro de 1988 em sua casa em Xapuri, quando abria a porta para se banhar no chuveiro que ficava no quintal. A Justiça condenou Darly e o filho Darci – acusado de ser o autor do disparo – a 19 anos de prisão. Três anos depois, eles fugiram da cadeia. Em 1996, voltaram a ser detidos. Cumpriram seis anos da pena em regime fechado, depois passaram para o semi-aberto e o regime domiciliar.
“Não foi só o Brasil que se levantou contra mim, foi o mundo inteiro”, lembra Darly. Ele não superdimensiona o que ocorreu naquela sessão de júri em Xapuri, a 175 quilômetros de Rio Branco. Foi o julgamento brasileiro de maior repercussão no exterior. TVs e jornais dos Estados Unidos e da Europa montaram links e estúdios nas ruas de terra da pequena cidade. O líder seringueiro era uma referência condecorada pelas Nações Unidas.
Hoje Darly vive na Fazenda Paraná, propriedade de 3 mil hectares na margem da BR-317, em Xapuri. É pai de 22 filhos. O filho Darci vive no Pará. No hospital, Darly lembrou o assassinato de um irmão na adolescência, quando a família morava em Minas Gerais. Foram anos de sede de vingança. Só deixou de lado a “questão” em 2006, ao sair da prisão pela morte de Chico Mendes. “Dispensei o cara. Ele está vivo até hoje”.
‘Conversa mentirosa’ – Para ele, o que fez está pago. Quando Darly ensaia falar de Chico Mendes, o filho se irrita: “Isso já passou, chega. É coisa velha”. “Já estou terminando”, diz o pai. O fazendeiro reclama que promotores lhe atribuíram crimes ocorridos no Paraná, onde viveu até 1974, que não teria cometido. “Quando fui preso, disseram que matei tantas pessoas. Tudo conversa mentirosa”, reclama. O filho tenta interromper a entrevista. “Já passou. É defunto velho de 20 anos”.
Darly conta que pensou em ser morto na prisão. “Certa vez chegou um tenente. Ele viu que a porta estava aberta e fechou com cadeado. No meu entender, naquela noite o pessoal ia me matar”, afirma. “Disseram para o meu irmão que eu poderia ser morto. Meu irmão disse: ‘Não acredito que alguém quer fazer algum mal contra ele, porque a família do finado (Chico Mendes) não faz mal para o meu irmão’”.
Darly diz que sua disputa com Chico Mendes não era política. “Eu não entrei em guerra com o PT. Eu não era político”. Ele não se diz inocente, mas reclama da condução do processo. (Leonencio Nossa / O Estado de S. Paulo)