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Vestígios de bem querer

Clara Manhã, ou Sarah, filha minha, veja como são as coisas aqui por este mundo de meu Deus! Aço puro. Água na fervura. Preconceitos na boca da botija. Infidelidade partidária ou conjugal. Chutes em baldes e no pau da barraca. Uma zorra!

Enquanto isso, de um lado, a auto-suficiência se faz inibida, envergonhada, meio acabrunhada; do outro, a irmã libido vira uma tormenta, um fogaréu, dá gargalhadas e cambalhotas ao redor do mundo, faz o samba do crioulo doido rodopiando pelos salões da burguesia, que mal me aceita; assobia e chupa cana e, depois, se recupera da ressaca comendo laranja a partir do bago. É assim mesmo. Pensar que um dia planejei tudo completamente diferente. Coisas da vida.

Como em quase todos os janeiros, cá estou. Primeiro, os gêmeos filhos meus eram pequenos e nos bastava a calmaria da região dos lagos. Agora, os caras estão realmente bem taludos e aguentam o sol do Leme na moleira. Dá até pra enfrentar as rodas de samba na Lapa e na Gamboa, além do ensaio na Mangueira, isto posto, porque ninguém é de ferro e muito menos eu, apesar de já está mais rodado que o fusca da Henriette Morineau. Ora, filha linda! Vir à maravilhosa e não ir compor a vida noturna, é como ir à Roma e não ver o Papa. Faço, já, até parte da paisagem, sim, sem maiores problemas. Nela estou esculpido, em pedra sabão, de uma vez por todas. Assim é o viver hoje em dia. Adaptemos-nos.

Isto por aqui está cada vez mais bonito, com certeza. Claro, há polícia espalhada nos quatro cantos da cidade. Bom é notar que o povo da zona sul, onde eu passo temporadas, já era bem afável e, agora, passa ao nível do cortês, do gentil, do plenamente educado, quando cumprimenta o forasteiro ou turista, no dizer dos que esperam o verão para ter um ganho que os sustenta por todo o resto do ano. Em suma, eles são bem mais citadinos que nós acreanos, que não somos chegados a mesuras que possam significar sinta-se à vontade.

Fico feliz em perceber que as minhas crianças até aprendem um pouco de urbanidade poraqui. Precisa ver como eles até já dizem bom dia ao transeunte que passeia com um vira latas felpudo atado a uma cordinha, e que deixa todas as calçadas com um terrível cheiro de urina do cão da madame simpaticazinha.

É assim a vida. Aprende-se tudo em casa e fora dela, a não ser quando se constata que uma parte pequena dos caribocas tentou levantar voo, mas não construiu base sólida antes e, por isso  –  não apenas lamenta viver nos pardieiros infectos, aqui denominados condomínios formados  por apertamentos mínimos  -mas se fazem complexados por não viverem na favela e muito menos na Barra. Assim é a vida. Fazer o quê?

Não proliferaram os mendigos nas ruas e, ao contrário, o número deles foi reduzido drasticamente. Resolveram, enfim, esconder do turista os excrementos produzidos pela própria sociedade que, do alto do seu pedestal, não viu que a negrada precisava de pão, circo, saúde e boa escola de verdade, não esses arremedos escolares tão comuns no meu Brasil varonil branco, preto, mulato, como salta aos olhos do Vinícius.

A praia continua sendo o lugar mais eclético do Brasil. Não há distinção de raça, cor ou credo. Os três gêneros aparecem vestindo roupas de banho que mal lhes servem para tampar as vergonhas, como em  Macunaíma, o livro do Mário de Andrade. Lá estão todos, sim. Uns vendem. Outros compram. Uns se divertem. Outros simplesmente buscam sobreviver negociando quinquilharias a preços absurdos, isto, é claro, porque no Rio se vive o ano da Copa do Mundo.

À noite, as casas de shows vendem sexo pela hora da morte. Um turista bizarro pagou três mil reais pelas ancas largas de uma loura que depois descobriu ser um louro. Sem muito o que fazer com aquele  trambolho, levou-a(o) para os  States e com ela/ele se casou… Vivem muito felizes e são pais de duas crianças lindas, mas zarolhas, dizem.

Pena é observar que os estrangeiros não estão nem aí… Mas o turista brasileiro gosta mesmo é de tirar retratos ao lado da estátua do Carlos Drummond de Andrade, embora sequer saibam de quem se trata.

Uma caipirinha a mais e eu perguntei a uma senhora, parece-me, de Minas:

– A senhora conhece alguma poesia escrita por este homem?
– Não. Não, senhor.
– Já ouviu falar em José, aquela que depois virou música? Ou na Prece do brasileiro, em homenagem aos tricampeões de futebol?
– Não, senhor!
– Foi este aí, sim, senhora.

Aí, do céu o Drummond deu uma gargalhada e falou:

– Esqueçam tudo isto. Apenas não pinchem a minha estátua, mas leiam os meus livros… E basta.

Saí em desabalada carreira, assombrado. O poeta acordara do bronze.

O samba de raiz, na Lapa, agora melhorou muito, a não ser pelos nomes dos sobrados mais rítmicos do mundo, que são bem antigos, como  sacrilégio, leviano, ingênua, cario-ca da gema, e assim  por diante.

A gastança e a bebedeira perdem o controle porque ninguém cá está com o objetivo de ser beatificado. Não. Esse tipo de coisa nós devemos deixar para mais tarde, aí pelas noventa voltas ao redor do sol, quando a libido haverá de se esconder com vergonha de tanta diabrura e, enfim, nem o Viagra há de reacendê-la… É assim o viver em tempos caóticos modernos.

A tal lei seca é, por aqui, bem branda porque o Estado miserável resolveu instalar câmeraspor toda a parte e estas flagram os excessos dos viandantes e também dos bêbedos, estas peças quase mecânicas corroídas que se postam atrás dos volantes dos carros estragando todo o resto da máquina.

Absurdo por aqui é não terem ensinado o povo a atirar o lixo no seu local devido. Agora, como sempre sugere o estado brasileiro dito capitalista, há multa de cento e cinquenta reais até para quem jogar uma guimba de cigarro na calçada.

Aí, eu fui sacar uns trocados na agência bancária em Ipanema. Antes de chegar ao banco, no meio de toda aquela gente chique, rastejava um homem sem as pernas, no meio do passeio público, sujíssimo, em andrajos, com o queixo quase encostado ao chão, pedindo esmolas. Deste, a assistência social esqueceu como também não vê alguns garotos que dormem sob os coqueiros da praia depois de horas intermináveis de uso do tal crack. Igualmente, a polícia também desistiu de filhinhos de papai  – inclusive filhinhas  –  que proclamam a liberdade fumando maconha recostados à areia fina e ao sabor da brisa do mar… Como na gíria antiga, tirando a maior onda.

Ah, sim! Acabei esquecendo a beleza das garotas que fumavam maconha na praia. Tão lindas nos seus cabelos bem tratados, nas suas bundas empinadas e mal vestidas em peças mínimas que lhes adentram as partes mais pudicas. Elas agora são um tênue fio na minha memória cinquentenária.

Mas não consigo tirar da memória um fator bastante significativo. As multas altíssimas são aplicadas pelo poder público em quem fizer uso indevido dos seus dejetos, das suas sobras. Todavia o mar da Ilha do Governador continua entulhado de lixo e o dejeto social representado pelo mendigo ninguém tem coragem de mexer e muito menos nenhum de nós poderá multar o Estado que não colocou em lugar apropriado esse tipo de excremento  –  seres humanos esquálidos e famintos  –  que a própria sociedade se encarregou de deixar em local indevido.

**Cronista nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri:
www.claudioxapuri.blog.uol.com.br  – Clara Manhã, ou Sarah Gurgel Mota, é minha filha de 14 anos.


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