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Já não se vive de amor por alguém

Melhor foi que o enorme pássaro de pedra não largou o menino moreno pardo ali no chão. Não. A grande águia pousou suavemente e o depositou em um nicho muito parecido com um ninho, ou com uma cesta estilo aquela que descia o Rio Nilo com o Moisés bíblico espantando crocodilos. Depois, então, ele alçou as vistas no rumo dos céus e viu que tudo fora obra de uma garça branca que o fizera nascer para o mundo de Deus e dos homens.

Algumas eras depois, outra vez em sono e sonho profundos, então, do alto de um penhasco, ele pode vislumbrar toda a humanidade, em caminho sôfrego e penitente, renitente, mas pacientemente, carregando ladeira acima os despojos e fardos a que todos têm direito e dever… E a trilha íngreme era e será interminável mesmo depois do fim dos dias de cada humano vivente por tão pouco tempo debaixo do céu.

A história de cada um vai ficando escrita e bem guardada ou publicada. Mas só o fazem apenas aqueles filhos para quem a sensibilidade foi transmitida, ou transferida, a partir de pais conscientes do seu papel na construção de um mundo mais feliz.

O sonho agora era frio em peles de carneiro e vinho de qualidade secular. Temperaturas baixas o faziam tremer, quase enregelar-se. Ali, a mesma humanidade seguia em transporte dolorido com os seus fardos de sal ardente às costas avermelhadas. Era aquele um tempo bem anterior e o menino feito homem foi encarregado de cumprir, na Terra, ofício nobre por Quem de direito.

Ministrava aulas embaixo de amendoeiras, ou sob pérgulas, ou em salas escuras e sombrias. O menino se fez professor de um tempo muito antigo, quando o respeito e a disciplina eram a tônica das relações que implicam na aquisição e transmissão do conhecimento dos mais velhos para as mais novas gerações. Ambientavam o sonho, além da neve, uma escola de pedra e argamassa, uma igrejinha feita de troncos e um banco onde as economias das pessoas do lugarejo eram depositadas fielmente. Algo me diz ser a Boston de séculos anteriores.

Ali, o diálogo do menino agora mestre escola era com um pastor puritano de barbas brancas, alto, magro e com cara de quem estava querendo ir para os céus todos os dias. Eles anteviam tempos muito exitosos para aquele povo e para aquela nação, tudo segundo os preceitos básicos da ordem e do respeito entre todos, principalmente, dos mais velhos com relação aos mais novos, e vice-versa.

-Cabe-nos levar muito a sério o futuro das nossas crianças e, assim, estaremos bem construindo o futuro desta terra abençoada. – Era esta mais ou menos a pregação em voga.

O outro amigo do transmissor de conhecimentos e experiências utilíssimas era um senhor forte e branco e sisudo e enérgico em seus bigodes vermelhos descendentes de irlandeses, talvez. Este, em atividade tenaz, de sol a sol, comungava o mesmo espírito segundo o qual a prosperidade deve vir a partir da organização das pessoas. Uns ensinam; outros aprendem e o devir da humanidade haveria de ser grandioso.

Um homem de fraque, cartola e bigodinhos enrolados para cima era o dono do banco. Também com este o convescote ao redor da mesa do jogo de gamão tratava de disciplina e trabalho de cada um em benefício e para o bem de todos. A pauta das relações seguia sempre pelos caminhos da organização e do planejamento que erguem as coisas mais sólidas desta vida.

Enfim, ele era um professor feliz, porque ali todos eram felizes.

O mestre escola veio a falecer porque a própria vela se apagou num domingo pela manhã, já aos noventa e um anos, cercado de todas as benesses que o estado organizado e respeitador do cidadão lhe outorgou. Era muito, sim. Ele bem o merecia

Mais tarde, então, veio um novo sonho agora mal sonhado depois de um despertar atônito em olhos arregalados. Uma farra, uma birosca, uma avacalhação total, uma loucura febril. Putz! Fora dado à luz logo ali! Não poderia ser em qualquer outro buraco do mundo?

É este um outro tempo e outro também é o povo e a nação. Sonhava, pois, uma quimera louca ambientada em terreno tropical e hostil. Teimosamente, como em reencarnação, ele não renasceu para o mundo enquanto um camelo, que teria vida muito menos difícil, nem como uma prostitua, cuja História a trata com o epíteto de mulher de vida fácil.

Agora ficou trágico demais, como não lhe poderia ter ocorrido. Ele se viu, novamente, enquanto ministrante de aulas. Mas o tempo já era outro, sim. Ele renascera acorrentado ao mágico e cruel destino de ser professor brasileiro no último arremate entre os dois séculos.

Foi neste exato sonho em tempo complementar esgotado que ele se viu a subir um milhão de degraus diários, feito um Sísifo do nosso tempo. Pior, então, foi que o sonho se tornou realidade e, ao abrir os olhos para a luz incandescente do real, estava ele sentado em uma cadeira, por trás de uma rota mesa, meditabundo e infeliz, ouvindo impropérios de cada aluno e de cada dirigente escolar ou bedel também desencantados, frustrados.

Foi para a alquebrada residência mais infeliz que nos dias anteriores. Mais tarde, em passeio imaginário pela Grécia clássica, ele rememorou a aventura de Sísifo, o herói mitológico que, por duas vezes, enganou a morte e, por isto, foi condenado a, por toda a eternidade, rolar uma grande pedra de mármore com as suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido.

Daí que, pelo motivo acima, a expressão trabalho de Sísifo, em contextos modernos, é empregada para denotar qualquer tarefa que envolva esforços longos, repetitivos e inevitavelmente fadados ao fracasso – algo como um infinito ciclo de empenhos que, além de nunca levarem a nada útil ou proveitoso, também são totalmente desprovidos de quaisquer opções de desistência ou recusa em fazê-lo.

Esse ser humano que a contra gosto habita as salas de aula é assim mesmo. O professor é o Sísifo da modernidade, notadamente aquele que apanha por anos na escola pública, onde, mesmo depois de velho, os mais novos teimam em não entender que os anos passam e a maioria dos humanos cansa e adoece em vista dos anos de esforços ingentes e resultados pífios.

Um dia, então, o meu Sísifo estava depressivo, na sala dos professores, à frente de um aparelho de televisão, mas com os olhos perdidos no espaço. Ao seu lado, em diálogo acabrunhado, ponderava uma professorinha de apenas trinta anos:

– Você já percebeu que as pessoas mais novas dificilmente acreditam quando as mais velhas dizem estar doentes? – Ao que ele argumentou com alguma sutileza:

– Pois é! O ser humano é mesmo assim: só crê na dor do outro quando a sente na pele, mais tarde, bem mais tarde, como se eles nunca fossem cansar. – Ao que ela completou:

– A bem da verdade, tudo isso pode tornar-se moeda de troco, no futuro, contra os donose guardiões de templos e escolas, os verdadeiros verdugos e massacradores da atualidade.

Antes de sair dessa vida, houve da parte dele a preocupação em fazer cursos de capacitação, então denominados mestrado e, depois, doutorado, por sete anos a fio, em esforços incomuns. Um dia, já em decadência, ao chegar perante a autoridade educacional, ele ouviu a assertiva seguinte:

– Meu bom professor! Queira compreender que o fato de o senhor haver passado sete anos se qualificando lhe condena a ficar mais sete anos trabalhando além do tempo da sua aposentadoria. É a lei. Os políticos despreparados é que fazem estas regras esdrúxulas. – Ao que ele respondeu:

– Quaisquer dos mais novos professores que aventurar-se ao alcance de objetivo como o de reciclar-se em níveis tão altos quanto os meus, haverá de pagar muito caro o desaforo que é ir contra as normas impostas pelo poder. Em síntese, jamais qualquer humano quererá trilhar tal caminho, posto que haverá de finalizar o seu roteiro mambembe, irremediavelmente, fulminado, em sala de aula, pelo infarto de um miocárdio entupido há quatro séculos.

Lembro o dia em que o William sapecou alguma coisa parecida com a assertiva segundo a qual nós sabemos o que somos, mas nunca sabemos o que poderemos ser.

O William não tinha um sobrenome qualquer. Era Shakespeare, um dramaturgo hoje conhecido por quase ninguém, num tempo em que a ignorância e a barbárie reverberam pelos campos, rios, montanhas e florestas desde imenso Brasil de meu Deus.

Ai de nós!

* Cronista e articulista jornalístico nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri.
www.claudioxapuri.blog.uol.com.br

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