Há cerca de duas semanas, o mundo se impressionou com as imagens de dois índios isolados em seu primeiro contato com não-índios, no Rio Envira. A cena insólita aos olhos da mídia nacional e internacional pôde ser comparada ao que aconteceu no Brasil de 1500, quando, junto ao mar, tribos inteiras foram devastadas pelos colonizadores portugueses e os que sobreviveram foram obrigados a fugir para dentro do continente, nunca mais voltando.
Numa época em que foram descobertos muito mais exoplanetas, aqueles fora do sistema solar – um deles descrito recentemente como habitável -, é incrível como a sociedade contemporânea sabe muito mais do que existe lá fora da Terra do que aqui, nas entranhas da floresta, como é o caso dos índios isolados.
E por que tanto espanto diante das telas de computadores ao redor do planeta? É que fatos como esses exercem fascínio diante de uma plateia global que já pensava ter se esgotado todas as oportunidades da experiência humana. Com uma simples googlada se tem o mundo, inclusive os próprios vídeos da Funai exibindo o primeiro contato filmado com os arredios, próximo à Frente Etnoambiental do Envira.
Mas o que a maioria não sabe é que no âmbito da região, os isolados do Envira conhecem muito bem sobre a existência de colonos e seringueiros e, num certo grau, até convivem, ainda que à distância, com eles, o que se justifica, por exemplo, o uso de facões, machadinhas e acredite, até espingarda, utensílios levados de casa quando os não-índios não estão à espreita.
Afirma o historiador Marcus Vinicius das Neves, articulista desta GAZETA: “É bom não esquecer que esses povos vivem em isolamento de nossa sociedade industrial, nacional, ocidental, ou como preferirem chamar. O que não significa que não nos conheçam”.
“Muito pelo contrário, eles vivem em isolamento voluntário. Ou seja, são povos que simplesmente passaram os últimos cinco séculos fugindo ou evitando deliberadamente contatos com não-índios. O que por si só já é o bastante para reconhecer que são sábios”, completa.
O problema é que, embora os sertanistas, antropólogos e alguns parlamentares defendam a integridade desses isolados, a movimentada atividade madeireira no Peru e a chegada de garimpeiros atrás de ouro, há anos vem causando a fuga deles para o território brasileiro.
As imagens rodam o mundo, mas pouco se fala sobre a real ameaça à sobrevivência desse povo, muitos deles massacrados, como alertou recentemente o antropólogo Terri Valle de Aquino, envolvido há décadas na causa dos isolados. “Há relatos de que madeireiros estão dizimando esses índios, colocando, às vezes, até quatro corpos numa cova só”, alerta Aquino.
Para o sertanista José Carlos Meirelles dos Reis Júnior, com o aumento da pressão humana em torno das reservas, “infelizmente, o destino dos índios isolados não está nas mãos deles”.
Em julho de 2004, o sertanista foi flechado no lado esquerdo do rosto, na mesma região do Envira, enquanto pescava. Uma das flechas penetrou em sua face e saiu no pescoço.
Em abril de 2009, quando concedeu entrevista à Revista National Geographic, Meireles torcia para que o contato inicial com os isolados do Envira não acontecesse por um bom tempo. À época, ele já dizia que a pressão sobre eles (os isolados) não era mais brasileira, mas peruana.
“Creio que nestes últimos anos os índios descobriram, no caso particular dos próximos ao Rio Envira, que nós, da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, da Funai, somos vizinhos diferentes daqueles que eles tiveram no passado e que os caçavam. Não nos temem como temiam seringueiros, madeireiros e garimpeiros. Já não mascaram tanto os vestígios quando andam perto de nossas bases”. (Foto: Funai)
ISOLADAS ATENÇÕES
Para historiador, receio é de que atenção seja “pontual ”
Para um dos maiores estudiosos sobre o Acre, a falta de políticas permanentes para garantir a integridade desses povos, ou que sejam capazes de evitar e minimizar os problemas decorrentes dos contatos eventuais com eles, é uma preocupação latente.
“Mais preocupante ainda é quando vemos que essa atenção pontual e passageira também acontece com as instituições de modo geral, especialmente aquelas que têm responsabilidade direta sobre essa questão, como a Funai e o Itamarati”, diz ele em artigo para A GAZETA.
“Felizmente no Acre, que sempre lidou com essa questão, de uma maneira ou de outra, existem pessoas e instituições que tratam disso de forma permanente. Para só citar algumas, entre muitas outras, o Txai Terri Aquino, o nosso famoso “Velho do Rio” José Meireles e o senador Jorge Viana. Aliás, este último ocupou a tribuna do Senado Federal, durante toda essa semana para não só informar ao Congresso, mas também à opinião publica brasileira, sobre os últimos acontecimentos e dos perigos inerentes ao contato com esses povos”.
Vinicius vai mais além: “Este é um compromisso antigo já que desde a época que Jorge foi governador que o Estado do Acre tem posição ativa na salvaguarda dos sertanistas, antropólogos e funcionários da Funai que atuam nas frentes de proteção, bem como na própria gestão e estruturação dessas frentes e dos territórios dedicados aos isolados. Uma posição que vem sendo mantida pelo ex-governador Binho Marques e pelo governador Tião Viana”. (Foto: Cedida)
Grupos arredios vivem quase como 30 mil anos atrás
Ao que tudo indica, índios da etnia masko piro são os mais frequentes nas cabeceiras do Envira, sobretudo no verão.
Como há cerca de 60 mil anos, quando surgiu o despertar da humanidade com a possibilidade da fala e da linguagem, no mundo inteiro as pessoas viviam uma vida seminômade.
Em seu livro “Uma Breve História do Mundo” (Editora Fundamento, 342 páginas), o historiador americano Geoffrey Blainey explica esse fenômeno entre 60 e 30 mil anos atrás: “Cada pequeno grupo de pessoas, raramente, chegando a 20, ocupava um grande território. No decorrer de um ano, mudavam sistematicamente de lugar, sem carregar nenhum pertence e fazendo uso da variedade dos alimentos da estação: uma uva madura aqui, uma plantação de tubérculos ali, um ninho com ovos de pássaros mais adiante, uma noz que amadurecia acolá. Desde que a população fosse pequena e os recursos naturais fossem muitos, as pessoas viviam em relativa abundância”.
É exatamente dessa forma que os isolados vivem hoje, em pleno século 21. Mas Meireles diz ter presenciado números maiores. E nem sempre os contatos esporádicos foram amigáveis como se vê nos vídeos recém-divulgados.
“Uma vez a gente se encontrou sem querer pelas praias e eles correram atrás de nós. Outra vez eles apareceram lá mesmo no posto. Foi em 2004. Mais de 100 homens desse grupo (masko piro) invadiram a casa, mexeram em tudo e foram embora”. No entanto, não levaram nada.
“Essa história de que é o sertanista que faz o contato com o índio tem de ser revista. Na verdade, é sempre o índio quem faz o contato. É ele que vai até o branco. Chega uma hora em que o território está tão pressionado que eles não têm mais para onde correr”, relata à National.
A sequência do contato, segundo Carlos Meireles:
* Você está no mato e de repente avista três índios pelados te olhando.
* A comunicação tem de ser por mímica.
* Os índios encontram todas aquelas coisas que não existem no universo deles, mexem em tudo.
* Não há um preparo específico para lidar com essa situação.
* Eles sofrem dois impactos depois do contato. Primeiro vem a doença. Até criarem resistência, mais da metade já morreu.
* Outra violência é a psicológica: nossa tecnologia muda a vida deles radicalmente.
* É como dar um pulo de 10 mil anos em uma semana.
*Muitos grupos têm de repensar a própria cosmologia porque veem que aquilo que o pajé falou não é bem assim.
* Por exemplo, em outros casos, alguns pensavam que nuvem fosse fumaça de fogo. Mas depois andaram de avião e viram que a história estava errada. (Foto: Cedida)
(Fotos: Funai)