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A donzela e o troteador

As chuvas torrenciais em grandes mananciais molhavam os destinos plantando mil desatinos nos sonhos dos que habitavam aquelas zonas ressequidas de corações e vidas partidas com muito sal e sem nenhum mel ou tão somente fel. Pássaros tortos ou mortos se chocavam contra as vidraças de um futuro quase inexistente, indolente, feito penitente.

Vendavais arrancavam árvores e florestas sem aparar arestas de almas entregues ao desamor e ao distanciamento de um para com o outro. Recordavam-se, sim, durante todos os infinitos segundos de todos os dias das suas infelizes vidas vencidas o quão haviam sido felizes, sem nenhuma sombra de dúvida, isto, há muito pouco tempo por apenas alguns dias em tarde e noites frias, bem antes de acordar.

Tinha ele, então, apenas vinte e três voltas ao redor do sol. Servira às forças de segurança como fuzileiro naval. Supunha ser um bravo, mas nunca conseguiu ser, de forma alguma, ou tão somente em pensamento.

A vida era dura para um sujeito que não nasceu para carregar pedra. Ano e meio se passou. Em nada se acostumara. Mas houvera suportado o eito e a trincheira esfumaçada e em sangue, à duras penas. Acreditara, então, que teria oportunidades de vida melhor se conseguisse engajar  -ou renovar o seu tempo no Exército  –  enquanto reles soldado raso ou pracinha semi alfabetizado. Qual nada. Mandaram-no, sim, para o front italiano onde recebera alguns estilhaços que lhe arrancaram apenas meio pedaço da orelha. Ficara, sim, estropiado das andanças pelas estradas em pedregulho. Tratara-se em um hospital de campanha bem próximo a Nápoles. Em vista dos tempos bicudos e da falta do medicamento da moda, a penicilina, o tratamento prolongara-se poronze longos meses. Por pouco a gangrena não o matou, graças quase unicamente aos poderes de Deus e a reza forte da mãe macumbeira baiana do Brasil.

Findo o período de tratamento, ficou meio aluado a dizer palavras desconexas, fazer gestos inomináveis, boca torta, catarro escorrendo e se misturando à saliva, muito espertamente, com o fito único de voltar para casa. Já houvera sabido de alguns dos nossos pracinhas que assim procederam e viram o golpe malandro dar certo.

De chegada ao Brasil, depois de algum tempo limpando convés, a família de origem italiana houve por bem colocá-lo a tratar-se numa estação de águas do sul de Minas, pouco desconfiando da versão mentirosa da loucura inventada adicionada agora a uma tuberculose galopante, segundo as tosses e estalidos peitorais também  idealizados pelo soldado esperto.

Seis meses depois, eis que o nosso herói, meio Macunaíma, sentiu que o golpe estava manjado. Veio um tio velho e solicitou a alta do interno de araque. Ainda arranjou-lhe emprego na padaria de um português incrivelmente apiedado. Passou a residir.  Tinha sobre si um teto, pela primeira vez em muitos anos.

Ali por perto, morava uma família cujo pai viera das terras altas da Escócia. Um marido já passado na casca do alho e uma mulher italiana ainda bem arranjada aí pelos trinta e poucos outonos. Do encontro rocambolesco de um gordão com uma magérrima, nascera uma menina de feições bem delineadas.

Agora, ela ainda sequer completara quinze voltas do ponteiro maior da vida. A família tinha bens ali nos arredores. Criavam animais de grande porte confinados em grandes galpões. Eram, sim, bem arranjados na vida em uma época em que toda a Europa foi varrida pelo vendaval do nazismo e eles vieram dar com os costados no Brasil. Por sorte, lá, pouco foi destruído e quase tudo reconstruído depois da hospedagem que deram a um pelotão americano durante oito meses. São agora braziliani.

O fuzileiro foi ficando por ali. O norte da Itália era iluminado e belo, principalmente pela proximidade dos Alpes em pleno verão, muito parecido como a região de Poços de Caldas. Ele sonhava diuturnamente com a possibilidade de aplicar um golpe em alguém. Agora, os planos poderiam tornar-se realidade se fosse considerado o fato de a mocinha dos Conti – O’Brian dirigir-lhe olhares adocicados e meio de soslaio.

– Tá na moda aplicar golpes! – Era o que ele pensava.

O plano então, vagarosamente, foi passando do pensamento à ação. Fingia agora ter-se apaixonado. Cheio de audácia, fez a abordagem aceita com alguma timidez pela mocinha. Em uma semana, conforme planejara, foi ter com o senhor O’Brian que aceitou as visitas do namorado entre sete e oito da noite, sempre sob as vistas de Romina, a mãe.

Tudo aconteceu, apesar dos cuidados maternais. Havia as idas e vindas ao colégio católico de São Judas Tadeu. Bastaram alguns minutos de folga, e pronto. Toda a água rolou por debaixo da ponte.

E os dias escorregaram timidamente, vagarosamente. Seis meses logo se foram por entre os dedos mais ágeis do mundo. Tudo estava consumado.

Só depois é que ela sentiu tratar-se de um mandrião que, antes, queria dela tirar proveito posando na casa arranjada e sustentada pelos pais daquela lúgubre e bela Sally, de olhos fitos no chão da sua história rasa.

Na Toscana, um dia, em passeio já com um amante, encontrou José da Silva, um brasileiro. Viu que a vida, enfim, daria certo ao lado de um sexagenário com muitas posses.

Mais uma vez o tiro saiu pela culatra.

Sally sequer teve filhos, mas caíram-lhe das estantes alguns itens encarregados de enfeitar a mulher. Quase enfeiara. O velhote era esperto e colocou tudo nas mãos de um agente imobiliário que, sem demora, passou  pra frente os cinco apartamentos da região dos jardins paulistanos. O dinheiro foi aplicado em renda fixa a partir do nome da filha mais velha residente em Águas de Lindóia e muito bem casada com um Matarazzo.

Nos dias que correm, uma alma vagabunda me acompanha nas madrugadas de segunda-feira rumo ao mercado dos peixes. Não dou bola aos mexericos de quem já morreu há duzentos anos. Agora mesmo esse espírito tosco do Astrogildo Berimbau me sopra ao ouvido e diz estar conversando com o Barão de Montesquieu segundo quem a mulher, da mesma forma que o homem, não é infeliz porque tem ambições, mas porque elas os devoram.

Um dos cearenses lá de casa melhorava a peça ao dizer que a cobiça quando é muito grande corre o risco de engolir o dono.

O mundo dá muitas voltas, mas em nenhuma delas a nossa heroína conseguiu sequer uma carona e hoje lava pratos num dos novos e lindos pardieiros do Beco das Garrafas, Copa, Rio, na esquina da Duvivier.

*Autor de Janelas do Tempo (2008), livro de crônicas; e O inverno dos anjos do sol poente (2014), romance.

Categories: Cláudio Porfiro
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