No aparelho de TV mal sintonizado sobre uma mesa enferrujada, clientes de um restaurante assistem ao noticiário de mais um ‘paro cívico’ nas cercanias de Cobija (a 240 quilômetros de Rio Branco),enquanto esperam a chegada do jantar: nacos de frango imersos a óleo quente com cremes de salsa e tomate mexidos com pimenta.
Apesar da aparência modesta, a broasteria Piu-Piu, na Avenida 16 de Julio, não pode ser frequentada pela maioria dos cidadãos bolivianos. O prato mais barato custa 26 bolivianos, o equivalente a R$ 10, valor considerado altíssimo para o padrão de vida local sufocado por uma das mais altas inflações do continente.
A reportagem na tela denuncia a insatisfação de duas dezenas de estudantes com a qualidade de ensino de uma universidade local. Coincidência ou não, parecem ser os mesmos reclames feitos há uma semana, dessa vez por estudantes brasileiros de medicina, quando alegaram que foram vítimas de assédio moral assacado por uma professora de bioquímica.
Dias depois, três brasileiros eram presos numa incursão à universidade feita por 15 homens da Força Especial de Luta Contra o Crime, a Felcc [a polícia militar daqui], sob acusação de baderna. Eles teriam mexido em dois extintores de incêndio da instituição e o comportamento foi vinculado ao problema com a professora.
Esses tipos de tensão — entre a população [sobretudo, a mais intelectualizada] e o estado boliviano — tem vigorado há décadas aqui, o país mais pobre da América Latina, cujo chefe de estado, Evo Morales é um populista indígena que alimenta o ódio pela direita, sufocando seus opositores até com cadeia se for o caso.
É assim, por exemplo, que em nome da “unidade”, o governo de La Paz mantém na prisão Leopoldo Fernandez, governador de Pando eleito em dezembro de 2005, mas deposto e preso no dia 16 de setembro de 2008, sob acusação de liderar atos que ameaçaram a segurança nacional e de genocídio.
Segundo Evo Morales, Fernandez foi responsável, cinco dias antes de sua prisão, por organizar o “Massacre do Porvenir”, no dia 11 de setembro de 2008, em que 15 camponeses foram mortos e outros 37 ficaram feridos, na zona rural de Cobija. Partidários de Fernandez teriam praticado os crimes, segundo o governo de La Paz.
“Isso tudo ilustra o quanto o nosso país ainda é carente de instituições fortes, descentralizadas e independentes do governo central”, diz em bom português Estevam Aristabal, 32 anos, de descendência cruzenha, como são chamados os de Santa Cruz, a região da Bolívia de pecuária e opositora à Evo Morales, que é de etnia ‘colla’.Por isso, eles não se emendam.
Trajando botas de caubói, jeans e uma camisa quadriculada, ele aceitou conversar com a reportagem de A GAZETA, antes de subir numa picape Toyota Tundra 2010, estacionada na Avenida Miguel Toranzo, no centro de Cobija. Suas características refletem a elite boliviana, endinheirada e preocupada com o destino do país, considerado ainda mais obscuro, com a reeleição de Evo Morales, prevista para o dia 12 de outubro próximo.
“Para vocês terem uma ideia, o Evo mandou fazer o cadastro biométrico de quase todos os campesinos analfabetos de La Paz e de províncias próximas, mas não fez o mesmo em Santa Cruz, onde ele sabe que os ‘cambas’ não pactuam com ele. Como resultado disso, será eleito de novo pela mesma classe ignorante da qual ele saiu”, detona o compatriota de Morales.
E como isso tudo se reflete entre os brasileiros que estudam ou que fazem compras na zona franca de Cobija? Se é por preconceito, por falta de informação ou por pura desconfiança [com toda a razão, já que não são raras as tentativas dos ‘patrícios’ de se darem bem sobre nós] o fato é que se percebe um medo latente nos olhos de muitos que vão às compras nas lojas daqui.
“Isso aqui me parece um local sem lei, onde todo mundo manda e a polícia usa de abuso para nos constranger”, frisa o estudante Francisco Fernandes, 24 anos. “Infelizmente ainda venho aqui, porque o Brasil nos rouba com seus impostos altos”, completa ele, mostrando duas bonecas compradas a R$ 74 cada uma e que só seriam adquiridas em Rio Branco por R$ 150.
A impressão dele é compartilhada com diversos brasileiros que vão às compras aqui, durante todos os fins de semana. Apesar desse receio de qualquer hora ser parado por alguma autoridade chapa branca,numa situação inadvertida, as lojas de Cobija estão sempre repletas de clientes.
Na Câmara de Comércio de Cobija, não há um levantamento de quanto a zona franca de Cobija arrecada na venda de seus produtos, quase que exclusivamente para brasileiros. No entanto, a estimativa é de que ao menos R$ 8 milhões por mês são faturados com a venda de quinquilharias tão diversificadas que vão desde bonecas Barbie made in China e perfumes, a relógios de luxo, pneus de automóveis e latas de sardinhas industrializadas no Equador.
“A Bolívia não produz nada. Só menino”, brinca Marcel Merida, proprietário de uma pequena quitanda onde se pode comprar pães regionais e também camisas falsificadas da marca Tommy Hilfiger.
“O problema é que há um preconceito de que nós, bolivianos, queremos levar vantagem em tudo. Não são todos”, diz Merida.
Já esteve pior. As extorsões de turistas por policiais de trânsito e autoridades aduaneiras se reduziram consideravelmente depois que o presidente prometeu punir com rigor, inclusive com a demissão, quem exigisse dinheiro indevido de estrangeiros.
“Mas os pais de brasileiros que vivem e estudam na Bolívia ainda são semestralmente vítimas de extorsão das mais descaradas, uma vez que é com esta periodicidade que têm que pagar um tal de visto de estudante para poder continuar estudando, situação única no mundo”, dispara o advogado acreano Valdeci Nicácio Lima, mestre em direitos humanos.
Agora, às vésperas de uma nova eleição que deverá assegurar a vitória de Evo ainda no primeiro turno, a Bolívia se vê numa continuidade que assusta.
A um periódico local, Evo disse que “agora ser autoridade não é para ganhar dinheiro, não é benefício nem negócio; ser autoridade é mais compromisso, esforço e sacrifício para o povo boliviano”.
Para analistas nacionais, suas declaraçõestentamconvencer os cidadãos que estão indecisos. Para nós brasileiros, uma certeza de que a Bolívia continuará uma terra segundo a qual se deve caminhar como se estivesse ‘pisando em ovos’. E viva la revolución bolivariana!