No último dia 13 deste mês, o Brasil se viu comovido com a morte do presidenciável Eduardo Campos (PSB) em acidente aéreo em Santos (SP). Com um país de dimensões continentais, o avião ainda é o melhor meio de se locomover e continuará sendo o mais seguro. No entanto, são por acidentes como esses, e de outros no passado, que falhas são corrigidas, evitando-se que novas tragédias voltem a acontecer.
Um desses episódios fez 12 anos ontem, dia 30 de agosto. A GAZETA traz nesta edição um retrospecto da maior tragédia aérea já registrada no Acre. Várias circunstâncias funestas causaram a queda do avião Brasília da já extinta Rico Linhas Aéreas, em Rio Branco, deixando ao menos 23 mortes e oito feridos.
Que lições foram deixadas com o episódio para a aviação comercial? Como vivem e se sentem alguns dos sobreviventes hoje?
Tarde agradável em Cruzeiro do Sul (distante 640 quilômetros de Rio Branco). No saguão do segundo principal aeroporto do Acre, amigos de despedem, enquanto o voo RLE 4823 é aprontado pela tripulação para mais uma perna entre Cruzeiro e Rio Branco e escala em Tarauacá.
Na sala de informação para pilotos, o co-piloto Paulo Roberto Nascimento obtém as informações meteorológicas de Tarauacá e Rio Branco. Aqui na Capital, o tempo começa a piorar a partir das 17 horas.
Na cabine, Nascimento começa os procedimentos de pré-voo e comunica as informações do tempo ao comandante Paulo de Freitas Tavares.
Na sala de embarque, o então deputado federal Ildefonço Cordeiro conversava com os amigos empresários João Gaspar, o “João Garapa” e Hasseni Cameli, o Manu. Só estes últimos dois vão sobreviver.
Uma confusão se forma. Passageiros sem reserva querem embarcar. Muitos querem chegar a tempo de ir para o antepenúltimo dia de Expoacre, dali a poucas horas, com atrações de bandas nacionais, em Rio Branco.
Mais de dez pessoas estão na fila de espera, entre eles o pecuarista Júnior Betão e Antonia Sales, hoje candidata a vice pela “Coligação Por um Acre Melhor”, encabeçada por Marcio Bittar ao Governo do Estado.
Júnior Betão, que a época era candidato a deputado federal, desiste de seguir no voo quando a servidora pública estadual Clenilda Nogueira chega nervosa. Ela reclama que alguém ocupou sua vaga no avião. Betão, que não tinha reserva porque comprou a passagem de última hora, cede a sua vaga no voo.
Com o avião prestes a decolar lotado, na escala em Tarauacá, pelo menos sete pessoas também não embarcam. Na cidade, somente três têm reservas.
Ainda no solo, em Cruzeiro, a passageira Rosângela Pimentel Cidade Figueira também não tem reserva. Ela estava no Juruá para um seminário na área de saúde. Começa um bate-boca com a médica Célia Rocha, exigindo uma vaga no avião. A então secretária de Saúde, Maria Jesuíta, ao perceber a confusão, entrega sua passagem a Rosângela e ao ceder-lhe o lugar, opta pelo voo da Varig do dia seguinte. Clenilda e Rosângela morrerão na tragédia.
O Brasília da Rico decola de Cruzeiro do Sul às 17h10 para Tarauacá. O primeiro trecho do voo será de cerca de 30 minutos. Os passageiros conversam.
Hasseni Cameli senta-se no lado direito da aeronave e na fila da esquerda próximos a Cameli estão os passageiros Luiz Maciel Costa e Ildefonço Cordeiro. A esposa de Cordeiro, Arlete Souza, senta próxima ao marido. Eles conversam durante todo o voo.
A etapa é sem turbulência numa tarde, aparentemente tranquila. Após o pouso em Tarauacá, três passageiros embarcam. Outros dois descem da aeronave. Dez minutos de solo e a aeronave decola para Rio Branco. Duração prevista de voo: uma hora. (Foto: cedida)
Veja a partir daqui a cronologia dos eventos que começam a 90 quilômetros de Rio Branco:
17h40m25s – O comandante do voo RLE 4823, Paulo Tavares, chama o Controle de Aproximação de Rio Branco, o APP-RB. Neste momento se inicia um desvio de rotina na empresa. Ao acionar o APP-RB, Tavares se põe na condição de piloto não voando. Ou seja, é o co-piloto quem está no comando da aeronave.
A recomendação do Manual de Rotina Operacional do avião Brasília da Rico, no item Política Operacional, recomendava que quando não houvesse visibilidade externa, o pouso deveria ser feito pelo comandante e por instrumentos. Mas Tavares não estava.
17h40m31s– o APP-RB informa que Rio Branco opera (pousos) por instrumentos, fornece os ajustes de altímetro, pista em uso e outros dados técnicos para orientar a tripulação do RLE 4823 até a aproximação pela pista 06, localizada para o lado da BR-364.
Entre o repassado, o controlador reporta “chuva forte e trovoada”, com visibilidade reduzida.
Na cabine de passageiros, já se avistam relâmpagos na região de descida. A educadora Maria de Fátima Meireles, que está na segunda fileira de bancos, vê clarões por todos os lados. Ela fica apreensiva.
Passados mais de oito minutos de voo e da primeira tentativa de pouso na cabeceira 06, a tripulação do RLE 4823 decide tentar a aterrissagem pela cabeceira 24, no lado oposto.
17h48m59s – o voo RLE 4823 pede autorização ao Controle de Aproximação para fazer o pouso pela cabeceira 24. O Controle prontamente, responde: “Afirmativo, autorizado!”
17h49m26s – o Controle de Aproximação faz um alerta ao voo RLE 4823: “Tá ciente de que não há auxílios visuais na aproximação da 24? Não há “papi” ou apapi e nem o ALS?”
O apapi, a que o controlador, se refere são luzes na cabeceira que orientam o piloto num pouso com pouca visibilidade, mas não com visibilidade zero, assim como o ALS, que significa Sistema de Luzes para Aproximação.
O comandante Paulo Roberto Tavares então responde: “Afirmativo, mas é que….a gente tá desviando aqui da formação pesada e…aparentemente aqui pela 24 tá melhor. (…) quando chegar mais próximo a gente avisa!”
17h54m49s – o Rico RLE 4823 opta por pousar na cabeceira 06, para onde seguiriam originalmente e onde existem os auxílios apapi e ALS. “Estamos aprovando pro procedimento da zero meia!”, afirmou Tavares.
17h57m39s – o APP-RB anuncia que vai colocar o balizamento do ALS, do apapi e das luzes da pista no brilho máximo. Pede então que a tripulação reporte assim que avistar a iluminação, para então, reduzir o brilho.
Na cabine de passageiros, todos começam a perceber que o tempo não está colaborando para o pouso. A chuva permanece forte e a visibilidade cai ainda mais. Mas por alguns segundos, o clima ainda não era de apreensão, segundo sobreviventes.
O deputado Ildefonço Cordeiro mostra um álbum ao amigo, Hasseni Cameli, o “Manu”. Entre as fotos estão as da solenidade em que fora homenageado pelas Forças Armadas, em Brasília.
18h03m30s -o controle APP-RB fez a primeira chamada ao RLE 4823. Seguiram-se então, outras sete tentativas de contato, mas sem sucesso.
O Brasília da Rico Linhas Aéreas colide contra o solo a quatro quilômetros da cabeceira 06 do aeroporto de Rio Branco, entre o intervalo de 17h57 e 18h03.
A aeronave bate na copa de uma mangueira, atinge um mourão e vai parar retorcido num descampado às margens do ramal da Chapada, na fazenda dos Alves. Três bois também são atingidos em terra.
Os três tripulantes e 17 passageiros morrem na hora. Outros três faleceram posteriormente. Seis sobrevivem com lesões graves e outros dois escapam quase ilesos, entre eles Hasseni Cameli, o “Manu”, que sofreu apenas fraturas no maxilar.
Sobre este momento dramático, descreveu Manu à reportagem o seguinte. “O Maciel estava com o rosto na janela tentando visualizar alguma luz lá fora. Foi neste momento que, de repente, ficamos todos calados. Então veio o impacto inicial. O avião já saiu batendo e a gente pareceu milho dentro de lata”.
“O Nosso Senhor tinha um propósito para mim”, diz Manu
A última vez que o empresário Hasseini Cameli, o “Manu”, concedeu entrevista sobre o episódio foi em 2010. Ele não tem praticamente sequela física alguma do acidente. Morando em Cruzeiro do Sul, onde tem vários negócios, entre eles um supermercado, Manu diz que psicologicamente se tornou apenas uma pessoa mais nervosa.
“Como preciso voar, eu consigo viajar normalmente hoje, mas não posso passar mais de 30 dias sem fazer minhas viagens porque me bate nervosismo. Por muitas vezes, só voava na cabine do piloto, porque ali eu me sentia mais seguro. Até que um dia um piloto amigo meu também da Rico me deu outro choque; ele me mostrou alguns equipamentos que não estavam funcionando naquele voo. Acabei me acostumando a voar na cabine de passageiros mesmo”.
Manu afirma que não morreu porque Deus tinha um propósito maior para ele. Ele ressalta que na época, estava com um projeto de assistência a crianças carentes no Instituto Santa Terezinha. Confira o seu relato quanto a isso:
“Os bancos voaram e querosene começou a cair no meu corpo. Me deu medo de que o avião pegasse fogo, mas estava chovendo. Antes, o barulho foi mais forte que qualquer grito e quando o avião parou, vi muita serpentina de ar, de óleo caindo. Eu não cheguei a desmaiar em momento algum”.
Ele continua: “Num primeiro momento, queria sair, soltei o cinto, vi muitos destroços por cima de mim e por baixo também. Fui buscar um buraco. Consegui rasgar o que seria fibra do avião e saí. Lá fora vi pessoas mortas, destroços e até bois mortos. Fui para o outro lado da fuselagem e lá vi uma graminha. Então eu saltei e saí em direção a uma luz. Era um casebre. Sozinho eu corri para lá”.
Hasseni Cameli prossegue dizendo: “Naquele momento, eu me perguntei. Por que Senhor? Mas neste momento, eu esqueci de mim. Não sabia quem eram meus filhos, minha esposa, o que estava fazendo ali e até quem eu era. O choque é tão grande que te faz perder a memória. Mas o Nosso Senhor tinha um propósito pra mim. Na minha mente veio uma reposta. Ela dizia: “As crianças”. Veio na minha mente as crianças carentes do Instituto Santa Terezinha. Disse, meu Deus, as crianças”.
“Eu penso que aquele trabalho não poderia ser interrompido e que a Providência Divina estava me dando um bem: a vida novamente, por querer fazer o bem àquelas crianças. A vida da gente é uma vela acesa que pode apagar a qualquer momento, mas só vamos na hora que é para ir. Existem milagres”. (Foto: cedida)
75 dias dormindo num quarto desconhecido
Ele sofreu uma pancada forte na cabeça e apagou. Acordou 75 dias depois perguntando pelo amigo Hasseni. “O que eu estou fazendo aqui?”, perguntou João Garapa. Depois pensou estar em algum hospital de Rio Branco e pediu pra ir pra casa. Mas não estava em Rio Branco. Estava num hospital de São Paulo para onde havia sido transferido depois do acidente.
“Eu me recordo de algumas coisas durante o vôo, de que conversava com meus amigos. Mas no momento da tragédia, eu simplesmente bati a cabeça e apaguei. Fui acordar num hospital de São Paulo. Ali, passei mais 15 dias até voltar pra minha terra em Cruzeiro. Ouvi pelos meus familiares o que se seguiu depois da queda, mas só me recordo que dormi”.
Na colisão, João Garapa perdeu uma parte do crânio e da massa encefálica, ficou sem os movimentos das pernas por conta de traumas no próprio cérebro, mas foi restituído de todas as suas funções e saiu do coma como se nada tivesse acontecido.
“Dez anos depois, costumo dizer que tenho duas datas de aniversário, uma no dia 7 de março e outra no dia 30 de agosto”, brinca.
Dezenas de cirurgias, incluindo a paciência de médicos e familiares para que seu cérebro desinchasse teve um desfecho positivo, segundo a própria vítima, graças às horas intermináveis de orações que se sucederam desde a queda.
“Eu recebi o apoio de todas as igrejas. Todos aqui em Cruzeiro, indistintamente, oraram pela minha recuperação e Jesus Cristo me salvou”, frisa João Garapa, emocionado.
“Não tenho nenhuma sequela. Nenhuma. Não sinto nada e costumo retribuir essa graça indo a missa todos os domingos”, completa.
“As pessoas precisam dar mais valor à vida. O conceito de vida muda muito depois de uma situação dessa”. (Foto: ULRICH P. KOPPE / DIVULGAÇÃO)
O exercício da paciência
As pessoas vinham conversando, vinham sorrindo, segundo a médica Célia Rocha, o que corrobora com os relatos de outros passageiros sobre o que teria ocorrido alguns minutos antes da queda.
“O avião vinha tranquilo e não me recordo quando ele caiu. Voltei a si no dia 9 de julho, em São Paulo, 30 dias depois do acidente. Aí vieram me esclarecer o que tinha ocorrido”, contou Célia Rocha, há dois anos.
Curiosamente, muitos jornalistas que foram cobrir a tragédia desde o Pronto Socorro de Rio Branco puderam registrar o momento em que Célia Rocha chegou. Embora bastante debilitada, ela foi retirada de um veículo sentada. Seus olhos olhavam para o infinito, como alguém muito pensativo.
“A minha lição disso tudo é que aprendi a ter o exercício da paciência”, diz ela. “É preciso valorizar o aprendizado da vida”. (FOTO: cedida)
Laudo sobre acidente aponta falha humana e desvios operacionais
Embora todo relatório do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) – órgão ligado ao Estado Maior da Aeronáutica e que investiga e expede laudos sobre acidentes aéreos no Brasil -, seja apenas para a prevenção e alerta para que acidentes em circunstâncias parecidas não voltem a acontecer, o do voo RLE 4823 convergiu para falhas humanas e erros de coordenação da empresa e de tripulantes na cabine.
Mas outros fatores, como o de meio-ambiente e de condições meteorológicas adversas também contribuíram.
A participação de variáveis psicológicas e individuais do comandante Paulo de Freitas Tavares e do co-piloto Roberto Nascimento, como ansiedade e pressão para que o pouso fosse realizado em Rio Branco é apontada como uma das causas. Na época, estava acontecendo em Rio Branco a feira agropecuária Expoacre. A tripulação poderia optar por ir para Porto Velho como alternativa.
“As péssimas condições meteorológicas, aliada à quebra de sequência dos procedimentos operacionais e, aliada à ansiedade da tripulação para a realização daquele pouso, naquelas condições meteorológicas pode ter contribuído para a canalização da atenção a outros fatores que não permitem observar a proximidade e ultrapassagem da altitude mínima de decisão do procedimento”, revela o dossiê de 26 páginas, assinado pelo coronel-aviador Mauro Roberto Ferreira Teixeira, chefe do Cenipa, e pelo brigadeiro-do-ar Astor Nina de Carvalho Netto, na época, comandante do Estado Maior da Aeronáutica.
“A tripulação não utilizou adequadamente todos os recursos disponíveis na cabine para a realização do procedimento (de aproximação e pouso) com segurança”.
O meio ambiente, por sua vez, na região do aeroporto, contribuiu para desestabilizar o pouso, além de “poucas referências iluminadas no solo, dificultando a visualização por parte dos pilotos na condição de voo noturno com céu encoberto”.
Soube-se, no entanto, que o sistema de alerta de proximidade ao solo, o GPWS não estava funcionando. O GPWS alerta a tripulação minutos antes de uma colisão contra terrenos.
Quatro testemunhas sobreviventes informaram não haver turbulência durante a aproximação até o momento do impacto.
A aeronave colidiu contra o solo em voo controlado e seus destroços se deslocaram por cerca de 650 metros de distância. (Foto: Arquivo A GAZETA)