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Sombrios dias tristes de outono

Não é toda hora que nos apercebemos de um fator inoportuno. O fim dos nossos dias vai sendo por nós penosamente carregado desde que nos deram à luz do mundo. Enquanto não nos chega a hora derradeira, vamos experimentando, ao longo da vida, o gosto amargo que é ver os entes queridos que vão desaparecendo na poeira do tempo. O extermínio de uma pessoa próxima é uma amputação. Perdemos uma parte de nós. Vai-se uma fonte de afeto. Deixa de existir alguém que dava sentido à nossa existência, porque despertava em nós o amor.

Aquele passeio triste a levara, por longas duas ou mais horas, a divagar pelos jardins antes coloridos e hoje cinzentos de tristeza e desencanto relativo ao mundo e às gentes. O gramado, rente a perder de vista, não tinha um verde tão esverdeado, era quase da cor da areia e chegava ao sopé da montanha que, antes, era coberto por floresta densa e depois, só depois, é que as rochas imponentes dominavam a paisagem.

Um riacho de águas cristalinas cortava, em comprido, de um pólo ao outro, aquele oásis de encantamento para todos, mas não para ela que, feito as árvores antigas, envelhecia, a olhos vistos, a partir dos galhos mais altos, uma vez que os acontecimentos dos últimos meses tomaram de um branco cinza intenso a cabeleira antes loura e esvoaçante.

Havia crisântemos e begônias. Álamos gigantescos ajudavam a esculpir a paisagem. Heras enfeitavam o solar de pedra de um século anterior. Flores do campo ornavam, ao fundo extremo sul, a paisagem de tirar o fôlego. Havia bancos carpidos em modelos de antiga marcenaria. Pássaros de um trinado desolador voavam para todos os cantos. Tudo era, ao mesmo tempo, tão triste e tão bonito e tão humano e tão frio e tão perfeito aos olhos dos melhores estetas usuários do pincel ou da máquina de tirar retratos.

Ela chegara ali havia quase um mês. Os ares do campo lhe foram receitados por um especialista em doenças da alma. Aqueles arredores de Palm Springs eram uma dádiva de Deus destinada aos humanos em cujo peito a tristeza arde muito mais que dói, rói, estilhaça. Ali, o distanciamento dos problemas diários e quase eternos poderiam afastar-se com o auxílio de anti depressivos e os bons métodos de psicólogos experimentados.

A melancolia encolhera a velha dama. O espírito definhara. Não dizia uma única palavra, mas se achava pronta para levar adiante a solução dos seus problemas. À noite, longe das vistas dos médicos e enfermeiros, lia autores pouco recomendados, como Gilles Deleuze, David Foster Wallace e Phillipe Jullian, personagens suicidas reais da literatura universal.

E veio, enfim, o dia da contemplação. O outro lado além dos limites do centro de tratamento era mais iluminado, mais agradável, apesar do ônibus que a conduzia trafegar por uma auto pista barulhenta onde ninguém andava a menos de cem quilômetros horários. Havia até algum contentamento no semblante de Matilda Rizzini, a matriarca sexagenária afogada em problemas de toda ordem. Como num milagre todo especial, as soluções surgiriam, em piscar de olhos, pela ação dos familiares que tomariam para si a pesada cruz que tão somente cabia a ela carregar.

As horas fugiram com a rapidez de um torpedo submarino fabricado pelo pai, antes, em Oklahoma. Os poucos pensamentos mais positivos voaram para muito além. Na descida da escada do ônibus, o condutor lhe dera a mão em auxílio. Mesmo assim, ela tropeçara no vazio. Lá estava, à espera, o filho mais velho com um semblante festivo cuja intenção maior era adiar o choque brutal que mais tarde viria.

– Mama mia! Como estás bela!

– São os seus olhos, bambino querido. Já não me suporto mais. Minh’alma se arrasta.

Matilda dominara e até conseguira multiplicar bastante uma fortuna razoável deixada pelo pai, um veterano de guerra, com o que ela, mui sabiamente, criara quatro filhos ao lado de um marido de poucas habilidades e nenhum esforço. Como seria normal pensar, não se tratava de um alcoólatra. Ele detestava bebida, mas, no dizer dos parentes menos próximos, naquele casamento oportunista, ele entrara apenas com o instrumento e ela com as crianças.

A tormenta se faz sempre por períodos quase intermináveis. Ciclones e tornados vêm e vão, mas deixam marcas profundas. Hibernar sem morrer não é para todas as criaturas. Poucas pessoas gostam de falar desses momentos em que a vida se faz fria e anoitece. Há meses, a dama do outono carregava dentro de si um fardo que ia para muito além do seu peso e da sua consistência psicológica.

Num bangalô em frente, residia Ingrid, filha de uma família de irlandeses ali chegados há muitos anos. Logo depois do colegial, ela fora enviada a estudar, em Princeton, algo em torno da moda. Depois se fizera estilista em Boston. Na casa ao lado, também da mesma idade que o rebento mais moço, morava Daniel, filho de pais separados, mas muito consciente do seu papel no mundo, desde muito pequeno.

O mais moço dos Rizzini nascera com certa dose de autismo, talvez. Em menino, passava os dias a brincar sozinho no jardim e a apreciar o movimento das outras crianças sem, no entanto, enturmar-se ou entusiasmar-se. Não ligava tanto para as coisas da escola. Aprendera a ler e a contar muito mais pelos esforços da mãe… E eu o via ali todos os dias de olhos baixos, mas sempre atento aos movimentos dos transeuntes.

– Hy, Bruce! How are you?

Calado por resposta. Ele não dizia se estava bem ou se estava mal.

Correram dias velozes. Aos dezesseis, ele se envolveu em questões que diziam respeito a um roubo de jóias na main street. Depois, passou a usar esses comprimidos sintéticos vendidos em portas de boate. Não duraram dois meses e ele já os vendia.

Certo é que, não tardou e já lhe apareceu um sócio bastante ambicioso a propor negócio altamente lucrativo.

– Nós arranjaremos o dinheiro, aplicaremos na aquisição do ecstasy, montaremos uma rede de distribuição e em três meses estaremos ricos.

Os olhos se arregalaram.

– Aceito!

O dinheiro foi arranjado em casa, de um cofre que ele aprendera as combinações desde muito tempo. Era de confiança.

Não tardou duas luas e a descoberta foi feita. Não se tratava apenas de um delito mínimo. Bem mais da metade dos guardados da mãe houvera se esvaído por entre os dedos avantajados do pequeno príncipe.

O acontecimento levou a senhora Rizzini aos cuidados dos curadores de almas, no centro de tratamento… Mas ela, agora, estava de volta ao lar, quase recuperada das sequelas deixadas pelo desastre financeiro a que fora submetida. Logo ela, uma mulher sempre tão zelosa com as contas e com o bem estar da família.

Em casa lhe contaram que uma investida da polícia houvera levado o seu pobre Bruce para a prisão, agora aos vinte e três verdes aninhos.

Não teve jeito. Depois de cinco minutos de conversa com os demais filhos, ela desacordou. Ceifara-lhe a vida um acidente vascular.

O filho foi trazido para os funerais. Os que o acompanharam postaram-se fora da casa, em respeito… E foi por isto que ele escapou, não em direção ao jardim, mas rumo à garagem. Sem mais delongas, foi direto a um velho baú e de lá retirou arma de fogo potente.

Encontraram-no sem vida. Também ele morrera de desgosto.

A sua única amiga  –  íntima até então, de nome Lucy  –  foi quem ficou com a parte pesada. Há pouco mais de um ano o pai assassinara-lhe a mãe e, agora, aquela que era já tida como futura sogra jazia no salão em exéquias, enquanto aquele que lhe parecia reservado por Deus estava em meio ao nada, na frieza daquilo que nunca houvera sido.

Vi tudo de perto. Era vizinho. Observei, ademais, que, como na poesia, é curioso como uma desgraça nos parece longínqua quando não nos atinge pessoalmente. Mas atingiu.

Nem todos sobreviveram… Ninguém escreveu uma carta para Lucy… Apenas um de nós compôs uma canção para a vida.

*Escritor

Categories: Cláudio Porfiro
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