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Exploração sexual de adolescentes: o submundo de uma cidade

Travestis são flagradas fazendo programa próximo à Rua Rio Grande do Sul; cena é comum em algumas ruas de  Rio Branco
Travestis são flagradas fazendo programa próximo à Rua Rio Grande do Sul; cena é comum em algumas ruas de Rio Branco

A morte de um adolescente encontrado no Igarapé Iquiry, em Rio Branco, no dia 10 deste mês, abriu uma série de questões ainda misteriosas para as autoridades. O rosto do jovem havia sido desfigurado e seu corpo estava amarrado a um tronco de madeira. Além disso, a vítima sofreu um tiro à queima roupa na barriga. Acredita-se que o adolescente tenha sido brutalmente torturado antes de morrer.

Algumas características deram pistas da identificação do jovem. Ele tinha cabelos longos, tatuagens, unhas pintadas e brincos nas orelhas. Amigos apareceram e logo identificaram o adolescente como um dos travestis que fazia programa nas noites de Rio Branco.

Segundo o diretor de Proteção Social Especial da Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social (Semcas), Fábio Fabrício Pereira da Silva, a vítima era na verdade Willian Aquino do Nascimento, 16 anos. Natural de Cruzeiro do Sul, o rapaz veio para Rio Branco aos 11 anos, após a família não aceitar a sua homossexualidade. Sem parentes na Capital, supõe-se que o jovem tenha recorrido à prostituição para sobreviver.

“O fato de ele estar amarrado no tronco quer dizer: ‘esse corpo não existe, não pode aparecer’. Ele foi desfigurado, amarrado, levado a 30 km da cidade e jogado em um igarapé. As pessoas que fizeram isso nunca pensaram que esse corpo apareceria”, apontou Fábio.

Na Certidão de Óbito, as causas da morte foram registradas como hemorragia interna e perfuração cardíaca por objeto de arma de fogo. Pelo estado de decomposição do corpo, os legistas chegaram à conclusão de que William morreu no dia 8 de novembro, dois dias antes de ser encontrado.

Apesar de os amigos terem reconhecido William Aquino do Nascimento, o Instituto Médico Legal (IML) não oficializou a identificação, pois precisava de algo mais concreto. Como o adolescente não possuía RG, a vítima acabou sendo enterrada como indigente.

No enterro havia apenas quatro pessoas. O padre Mássimo Lombardi, Fábio Fabrício, a coordenadora do Centro Pop do Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e um integrante da igreja católica. Nenhum membro da família de William foi ao local.

Procurada pela A GAZETA, a Assessoria da Polícia Civil, que investiga o caso, afirma que a família chegou a recorrer ao órgão para reconhecer o cadáver. No entanto, sem identificação cível válida, ou seja, o RG, isso não foi possível. O IML colheu amostra do DNA do adolescente, mas o resultado do exame é algo demorado. Não saiu antes do enterro. Por isso, a vítima foi enterrada como indigente.

Ainda de acordo com a Polícia Civil, o caso está sendo tratado com prioridade absoluta e as investigações sobre o crime seguem avançando. Porém, até que o DNA comprove de quem era oficialmente o corpo encontrado no Igarapé Iquiry, nada pode ser concluído. (Foto: Juan Diaz/ A GAZETA)

Mercado do sexo é ativo em Rio Branco

Fábio diz que exploração sexual é um crime organizado
Fábio diz que exploração sexual é um crime organizado

Para as autoridades envolvidas com o trabalho social, o maior receio é que a morte do jovem William Aquino, 16, não seja a última.

Atualmente, existem aproximadamente 12 adolescentes em situação de exploração sexual acompanhados pela Semcas. Sendo que, desses, 10 são meninos e apenas duas são meninas. Mas, esse número pode ser muito maior, aponta o diretor de Proteção Social Especial, Fábio Fabrício.

“A exploração sexual é um crime extremamente velado. É muito mais fácil materializar exploração sexual do que o abuso que acontece dentro da família. Hoje, temos um número menor de mulheres adultas na rua do que há 10 anos, que são as profissionais do sexo. Esses pontos estão, em sua maioria, tomados por travestis adultos e adolescentes”, afirma.

Em um mapeamento feito pela Semcas, alguns locais da cidade se destacaram como pontos utilizados para esses jovens venderem o corpo. Basta percorrer as ruas Minas Gerais, Rio Grande do Sul e toda a Via Chico Mendes, entre 19h e 4h, para perceber a presença de travestis e mulheres que fazem programa. Fábio ressalta que nem sempre essa partilha por espaço é pacífica. Além disso, na maioria das vezes, tem alguém os mantendo ali.

“Têm muitos adultos, mas eles há 5 anos eram adolescentes. São os mesmos. Inclusive, alguns desses adultos assumem a exploração dos menores. Isto é a reprodução do ciclo da violência. Meninos que foram explorados na infância hoje assumem. É um mercado do sexo. Há uma delimitação de território. Há brigas entre eles também. É uma lógica mercadológica. E o grande problema é que, muitas vezes, esses meninos e meninas não se veem como vítimas, porque no final da noite, às vezes, eles têm uma grande soma de dinheiro. Inclusive, mais dinheiro do que se recebessem um benefício assistencial”, revela.

Os valores do programa variam muito na cidade. Meninos que modificaram o corpo para ficarem com formas femininas geralmente cobram mais caro. Passar a noite com um cliente pode ir de R$ 100 a R$ 200. Boa parte cobra R$ 50 para um ‘atendimento rápido’. No entanto, há quem faça um programa por até R$ 7 ou por uma barra de crack, a fim de alimentar o vício.

“Existe programa que é feito apenas para o menino ir para a hidromassagem do motel ou então para comer os doces que têm nesses locais, porque querem satisfazer também o mundo infantil. Ou seja, o corpo de um adolescente de 14 e 15 anos vira uma atração sexual. E isso é terrível”, acusa Fábio Fabrício.

Os clientes da exploração sexual agem em maior potencial do que os clientes da prostituição. Isso significa que, no mercado perverso do sexo, as crianças e adolescentes são mais cobiçadas do que uma mulher de 30 anos, por exemplo.

Para Fábio Fabrício, a exploração sexual é um crime altamente organizado. Em torno desse mercado giram: dinheiro, pacto de silêncio, segurança e alta lucratividade. O menino que faz um programa por R$ 200, por exemplo, nem sempre fica com todo o lucro. Às vezes, ele precisa repassar parte disso para o cafetão ou à pessoa que o iniciou ali.

A Semcas já tentou alertar a polícia várias vezes sobre o risco que esses adolescentes correm nas ruas durante a noite. Em 2009, a secretaria havia identificado a existência de uma casa que servia para manter meninos que vendiam o corpo. A residência ficava localizada no Taquari e supostamente pertencia ao Raimundo Pereira de Carvalho Júnior, mais conhecido como ‘Raissa Rios’.

A assistência social estranhou o fato de todos os meninos envolvidos com a exploração sexual darem aquele endereço para a apuração dos fatos.

Em março de 2010, ‘Raissa Rios’ esteve envolvida com o sequestro de algumas pessoas. Inclusive, ela foi acusada de ser a mandante e chegou a ser presa. O caso foi considerado complexo na época e relacionado a outros crimes como formação de quadrilha.

Um relatório foi enviado para a polícia. Só que até hoje a Semcas e outros órgãos de defesa da criança e do adolescente não obtiveram resposta.

“Temos relatos de meninos que disseram que lá na casa da Raissa Rios, no Taquari, chegavam a ameaçar, aplicar sangue contaminado, caso falassem algo”, afirmou Fábio.

No dia 30 de setembro deste ano, a laje da casa no Taquari despencou sobre Raissa Rios. Ela não resistiu aos ferimentos e morreu. Dessa forma, o seu real envolvimento com a rede de exploração sexual em Rio Branco nunca foi esclarecido.  (Foto: Brenna Amâncio/ A GAZETA)

Travesti revela os segredos das ruas
A equipe do jornal A GAZETA conseguiu, com exclusividade, conversar com uma das travestis que fazem programas em Rio Branco. Com medo de ser reconhecida, pediu para ter a identidade preservada. Para esta matéria, o nome fictício ‘Joaquina’ será usado para se referir a ela.

Sorridente e comunicativa, a jovem, que hoje tem 25 anos, escolheu com muito cuidado as palavras para usar. Talvez medo de falar demais ou apenas receio de ser mal interpretada. Com salto alto, cabelos longos e unhas pintadas, ela se apresentou como uma pessoa comum, que trabalha para sobreviver.

Joaquina assumiu a homossexualidade aos 15 anos. Seus primeiros relacionamentos foram dentro de casa com os primos. Em seguida começou a vender o corpo nas ruas e descobriu que aquele era um negócio muito lucrativo. Em um único mês ela já conseguiu juntar R$ 8 mil.

Aos 17 anos, ela conheceu um homem mais velho, a quem se referiu como ‘pedófilo’, que pagou sua cirurgia para por os silicones nos seios. A transformação veio acompanhada da rejeição da família. “Minha mãe disse que eu estava muito diferente e aquilo seria difícil de aceitar. Então, ela me expulsou de casa”.

Sem ter onde ficar, Joaquina viajou para vários lugares como Porto Velho, Cuiabá, São Paulo e Rio de Janeiro. Em cada um deles fazia programas para se sustentar. Depois de uns tempos, voltou para Rio Branco.

Ela revela que a maioria dos clientes acreanos são homens casados. “Nós os chamamos de mariconas, porque eles pedem pra fazer na gente e que a gente faça neles”, explicou.

Os programas nem sempre proporcionam luxo para Joaquina. Ela já chegou a atender clientes até em banheiro de bar, debaixo da ponte e em quintais abandonados.

Além disso, o medo é um companheiro constante de quem vende o corpo nas ruas. Joaquina já sofreu tentativa de homicídio de um dos homens com quem saiu. “Apanhei várias vezes. Tenho medo, porque não sei com que tipo de pessoa vou sair. Pode ser um louco ou drogado”.

Joaquina chegou a sair com até 10 clientes em uma única noite, mas geralmente, se faz cinco programas por dia pelo valor de R$ 50. Os dias mais movimentados para ela são sexta-feira, sábado e domingo. A freguesia aumenta também de novembro a fevereiro. “É igual loja”, brincou.

Quando perguntada sobre o pacto de silêncio que existe entre as pessoas que compõem a rede de exploração sexual em Rio Branco, ela apenas sorriu sem dizer nada.

Atualmente, Joaquina vive das lembranças de quando fazer programa era algo lucrativo para ela. Depois que se envolveu com as drogas, não conseguiu mais juntar dinheiro. Tudo o que ganha usa para alimentar o vício.
Sonhadora, ela diz que a próxima meta será largar as drogas e deixar de se vender, pois enjoou do negócio. Em seguida, pretende procurar emprego como manicure. “Estarei mais segura assim”, afirmou.

Abandono da família
De acordo com a Semcas, essa situação de exploração na rua geralmente começa com o conflito familiar. “Ou também pode ser aquele menino que deu trabalho na escola, que acionou o Conselho Tutelar, que não deu jeito e ele acabou indo para a rua, para as medidas socioeducativas ou fugiu de um abrigo”, destacou Fábio Fabrício.

A família que rejeita os seus filhos homossexuais, às vezes, é violenta ou está envolvida com álcool e drogas. Há, ainda, o fator religioso, que deveria ter caráter de proteção, mas, em vez disso, exclui o menino.

“Aqui em Rio Branco,  temos a presença muito forte de religiões com caráter doutrinário e rígido. A sociedade costuma achar um absurdo uma criança de oito anos ser abusada sexualmente, mas culpam um adolescente de 14 anos que está na rua. A sociedade chama de prostituição infantil, mas não é. É exploração mesmo. A exploração sexual se caracteriza com adolescentes que são levados a se prostituir para satisfazer o mercado do sexo”, explicou o diretor.

Sem o apoio familiar, parte desses jovens é empurrada ao submundo da cidade, onde é fácil entrar e quase impossível sair. A maioria não se vê como vítima do sistema. Para fazê-los entender, seria preciso um trabalho psicossocial aprofundado na vida de cada um.

A coordenadora do Centro Pop do Creas Capoeira, Silvia Aleticia, acredita que esses garotos e garotas procuram a valorização geralmente negada pela família. “Todos os seres humanos buscam o auto reconhecimento. Então, muitas vezes, os adolescentes e adultos que estão em situação de exploração querem ser valorizados. Para eles, receber pelos serviços e estar com um homem de posição social mais elevada é estar sendo reconhecido. E, vale ressaltar, que muitos deles, quando começaram a perceber a sua orientação sexual, não foram compreendidos nas suas famílias. É quando eles vão para a rua. O programa acaba servindo para eles se encontrarem nesse processo de valorização”, apontou.

Delegacia especializada ajudaria a combater o crime

Promotor pede prioridade para a criação da delegacia
Promotor pede prioridade para a criação da delegacia

O Programa de Ações Integradas e Referenciais para o Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes (PAIR) foi criado em 2003 em sete cidades do país, inclusive em Rio Branco. Com isso, um plano nacional foi elaborado com eixos que vão desde a promoção, proteção, protagonismo do próprio jovem até a responsabilização do agressor. Muitos avanços foram alcançados na área, mas a falta de uma delegacia especializada nesse tipo de crime impede que muito mais seja feito.

Para o promotor de Justiça da 3ª Promotoria Especializada na Defesa da Infância e Juventude, Francisco José Maia Guedes, a prevenção ainda deixa a desejar. Ele alerta para o perigo das fronteiras e destaca Rio Branco e Brasileia como rota da exploração sexual no país, segundo mapeamentos. “As nossas fronteiras estão inteiramente desguarnecidas. Em Brasileia e Epitaciolândia é muito fácil você sair. Não temos, por exemplo, uma Polícia Rodoviária Federal nossa. A que existe aqui é toda ligada a Rondônia. O Governo Federal precisa ter um olhar mais cuidadoso com a fronteira”.

O promotor lembra o caso de uma acreana que foi resgatada em 2004 em La Paz, na Bolívia, após ser explorada sexualmente. Na época, a vítima era menor de idade e estava no local há quatro anos. A família acreditava que a menina estivesse estudando.

“Precisamos de uma delegacia especializada em crianças e adolescentes vítimas. Esse é um ponto que nós ainda estamos em luta. Porém, nós temos enfrentado algumas dificuldades dentro da Segurança Pública e da própria polícia em querer isso. E não é uma questão de aceitar, mas sim uma necessidade, uma prioridade absoluta”.

O diretor de Proteção Social Especial da Semcas, Fábio Fabrício, divide a mesma opinião do promotor e pede mais empenho das autoridades. “Eu tenho muito bom contato com a polícia e acho o trabalho dela de extrema importância. Mas acredito que falte empenho institucional e, principalmente, o entendimento de que isso não é natural. Temos uma cortina de naturalização de tudo. Não quero acreditar que tenham mais autoridades envolvidas no crime de exploração sexual. Sabemos que temos senhores da sociedade que contrata a mão de obra sexual desses meninos”.

O Acre é um dos poucos estados que possuem uma Vara específica para tratar de crimes contra a dignidade sexual da criança e do adolescente. Apesar disso, existem inúmeras dificuldades. O Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente (Nucria), que atualmente é um dos maiores aliados dos órgãos que trabalham com jovens em situação de risco social, só funciona durante o dia. E, na maioria das vezes, o perigo existe à noite.

Para Fábio, o foco da assistência hoje não é só o pobre de renda. Existem outras dimensões da pobreza, que é justamente onde entra a exploração sexual, violência física e psicológica. Esse é o público dos serviços da proteção social.

Ainda indignado, Fábio Fabrício afirma que quer saber o que aconteceu com William Aquino, o adolescente encontrado morto no Igarapé Iquiry. “Se a família não vai atrás, nós vamos. Nós o matamos. A nossa inércia o matou. Não foi só o explorador. O explorador representa cada um de nós. Alguns dizem que ele procurou a morte. Mas claro. Durante 16 anos ele procurou a vida na família, na sociedade e não encontrou. É preciso priorizar na agenda pública da Segurança. Porque o Conselho Tutelar, a Associação de Homossexuais e a OAB ainda não se manifestaram sobre isso. Precisamos de uma delegacia especializada. Não dá para a Vara da Infância e Juventude estar apenas em festas notificando adolescentes. É mais do que isso. Esse menino (William) carrega segredos obscuros da sociedade rio-branquense”, desabafou.

Para denunciar casos de violência contra crianças e adolescentes procure informar ao Disk 100, para a Coordenadoria da Infância e Juventude do Ministério Público, ao Nucria, conselhos tutelares, e à Vara da Infância e Juventude. (Foto: Brenna Amâncio/ A GAZETA)

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