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Os deuses não querem ser astronautas

O vento sibilava frio, cortante, pleno e constante, marcante. Flocos finos de neve passavam esvoaçantes, perambulantes, extenuantes, da mesma forma que antes. Logo eles seriam mais volumosos, como que miraculosos, ou até mesmo raivosos, posto que já viria a noite como um açoite a maltratar as mil almas resignadas, ensimesmadas, mas calmas. A culpa teria sido do destino felino, ferino e ferindo de morte a deusa das ilusões perdidas em mais outras vidas feridas e divididas com outros tantos irmãos de infortúnio. Era inverno no Ártico da desesperança em flor de lótus negra, a megera que faz sucumbir a felicidade de quem nunca a teve.

Completara, já, umas muitas dentre tantas outras voltas ao redor do sol de abril, já não mais juvenil, de um ano cinza ou dourado qualquer, como o coração de uma mulher. Meio vil, meio esquecível, um tanto desprezível, ele assim se tornou. A sua luta não valeu a pena porque a alma ainda é pequena. Perdeu o jogo para um adversário que, enfim, era ele mesmo.

Também, pudera! Arrojara-se a Dom Quixote em um tempo em que a ninguém é dado sonhar demais e poucos são os cavaleiros andantes que vão além dos limites do seu próprio ego… Em verdade, estamos perdidos no meio de uma multidão de iconoclastas.

Então, esqueceram-no ali, naqueles ermos. Fora deixado a ruminar a sorte e a morte que poderia ter tido, mas não teve nenhuma das duas e, por isto, hoje segue em andares tortos e esgares mortos, com a alma equilibrada na sua própria sina barata.

Mataria o primeiro e o segundo dentre outros que aparecessem a lhe perturbar o espírito já rarefeito, brumoso, caótico, de olhos revirados. Acometera-lhe um mal qualquer. Certamente, estaria padecendo de loucura mesmo. O curandeiro de almas tardias  –  psiquiatra, no dizer dos normais  –  afirmara-lhe, em papel passado e assinado, estar com os nervos à flor da pele em osso, ou em frangalhos, em vista da vida ensandecida em que se meteu por três décadas a fio em meio a espíritos derretidos e obtusos que se contorcem em dores de atrasos e imbecilidade prematura.

– Tome rivotril, consorciada à sinvastatina, até que não mais lhe reste nenhum sopro de vida nesse seu corpo torto e arredio. – Foi o que lhe disse o pajé dos espíritos adulterados.

Ali mesmo ele recitou e dedicou ao médico uma primeira estrofe do Álvares de Azevedo:

Passados alguns séculos de batalha de vida ou morte com um destino cobrador de impostos, findou por adoecer, mas ninguém acreditou. Taxaram-no mentiroso.  Fizeram-no um preguiçoso ambulante, estereótipo dos mais velhos, caquéticos, que se arrastam nas batalhas deste mundo afora já sem forças para o embate. Tudo é tão difuso e é assim que os mais  novos veem os que estão a chegar ao fim da linha, na entrada do túnel, extenuados pelas batalhas perdidas em antros onde as razões não se discutem, porque as emoções tornam tudo muito mais barato e dividido em parcelas a perder de vista…

É realmente contraditória a vida de quem quer ensinar algo de mais proveitoso a alguém cuja índole foi talhada desde há muitas gerações para não ir além do irrisório.

Depois, bem depois de passados milhares de sóis ao redor deste planeta mal concebido, um dia, esteve em visita a um dito agente maior, grisalho, bondoso, grandiloquente, já na porta dos céus. Lá, quem balançava ou guardava as chaves era uma moça muito bela, uma cida que, parece-me, não era aparecida, e muito menos petra,numa alusão a Pedro, o apóstolo que negou o Homem três vezes.

Depois, travou diálogo inócuo com a agente menor. Era uma musa belíssima que parecia saída das gravuras de Da Vinci ou de Ticiano. Quiçá tivesse vindo do céu onde talvez ele já tivesse chegado. Seria bom demais!

O poeta boquirroto manquitolava pelos corredores porque os cascos traziam enfermidade que lhe causava dores atrozes, lancinantes mesmo, no dizer dos neurologistas e vasculares. (A doença tem o nome de isquemia e o Dr. Google a conhece muito bem.) Ele muito falou. Dele ninguém nada quis ouvir. Apercebeu-se o esteta torto, então, sem a necessidade de tanto analisar, que os modernos, desde trinta séculos, não estão preocupados em ouvir o que têm o irmão faminto a dizer. Entrementes, eles já estão preparando as repostas que, no mais das vezes, nada têm a ver com o problema que jamais seria analisado por quem de justo direito ou dever, ou os dois.

(Deixemos claro em outras palavras, porque é assim que mandam as boas receitas. Chegado ao protuberante delegado de polícia, você lamenta que estava faminto e por isto roubou do outro mendigo o pão seco que te arregalou o estômago. O homem da lei ouve pouco, ou nada ouve, porque a sua preocupação é a última verdade que é sempre de quem manda mais: você está preso por roubo e cala a boca, infeliz!)

Ora! Neste mundo de cá, quem é que hoje estaria disposto a prestar atenção ao problema do outro?… Dificilmente!

A velhice se abateu por sobre o corpo dolorido e atingiu a alma asquerosa do sábio infernal. Em palavras mais claras, o estado neurológico debilitado levou o organismo físico a pagar o pecado dos outros. Erupções cutâneas lhe apareceram nas patas traseiras e, por isto, feito o cavalo velho útil por dezenas de anos, foi largado em estado mórbido a esperar a última hora pastando grama inexistente jamais nascida em uma ravina coberta de neve.

Eu, cá de minha parte, observei aquela alma em andrajos acima e abaixo em busca de cura para a doidice. Um dia, apesar do semblante pouco amistoso do monitor dos escuros, dei a ele, na passagem pela frente da minha vivenda, um remédio literário receitado por Victor Hugo, Os miseráveis:

Os nossos deuses, apesar de portarem diplomas de nível superior, jamais seriam astronautas e sequer um dia chegarão a espíritos superiores. Entediaram-se. Encolheram-se. Deram sumiço em si próprios. Uns foram para o inferno. Outros chegarão lá a qualquer hora dessas.

Em realidade, Däniken, o visionário de um mundo neural de anjos e demônios descrito em Eram os deuses astronautas, era um louco varrido, como eu, como você e como tantos outros mais.

Então, juntos e perfilados, atiremo-nos todos às labaredas!

* Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

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