Depois de quase duas décadas, a Justiça Eleitoral diplomou um deputado com origem classista. A eleição do sindicalista Raimundinho da Saúde (PTN) marcará uma nova relação na Assembleia Legislativa. A expectativa é que poderá existir uma interlocução privilegiada e disposta a ouvir todos os segmentos sociais.
O novo deputado, que é fisioterapeuta e técnico em enfermagem, milita na Saúde há 25 anos, onde se tornou presidente do Sindicato dos Técnicos em Enfermagem, Auxiliares e Enfermeiros, o Spat. Deficiente, Raimundinho também esteve à frente da Associação Riobranquense de Deficientes Físicos (Ardef). Agora, ele pretende ser a voz da população acreana que está ávida por uma verdadeira representação na Aleac.
Raimundinho se tornou uma referência quando o assunto é a defesa de direitos. Em sua opinião, a política é para servir, fazer do espaço institucional um local para se discutir ideias, propostas e realizar ações comprometidas com a maioria da população.
Eleito sem comprar um único voto, ele afirma que é preciso moralizar as instituições que, a seu ver, estão em frangalhos, imersas numa crise de representatividade jamais vista na história política brasileira. “Temos que superar essa crise e criar uma nova cultura, onde valores como a solidariedade e justiça social sejam as tônicas das agendas políticas”.
Nesta entrevista, ele comenta sobre a sua eleição, projetos e expectativas para sua ação parlamentar. Vejam os principais trechos:
A GAZETA – Depois de mais de duas décadas, os acreanos voltaram a ter um representante de classe?
Raimundinho – Sim e não. Sim, porque tenho quase toda a minha formação e trajetória ligada ao sindicalismo e à defesa de direitos. Continuarei sendo um representante dos movimentos sociais, todavia, como deputado, represento toda a sociedade. A luta agora é em outra esfera de poder.
A GAZETA – O senhor se elegeu por um partido que integra a base de sustentação do governo. Como será essa relação, uma vez que são frequentes e notórias as cooptações?
R.S. – Não vejo nenhum problema em ser da base de sustentação do governo. Integramos poderes diferentes e teremos relações institucionais, sempre respeitando aquilo que é o propósito da política, ou seja, a defesa dos interesses da coletividade. O nosso mandato sempre estará do lado da população.
A GAZETA – O atual governo, mesmo depois de 16 anos no poder, não conseguiu criar um modelo econômico capaz de gerar riquezas. Por quê?
R.S. – Precisamos atrair investidores para o Estado. Acredito muito no potencial do Acre, principalmente porque estamos numa região geográfica privilegiada. A agricultura pode ser uma alternativa. O Acre, por sinal, é o único estado da federação que ainda não entendeu o quanto esse setor é estratégico. Saímos do combalido extrativismo para o nada. O saudoso economista, Celso Furtado, defendia que a agricultura chegasse aos rincões para desenvolvê-los, ou seja, a melhoria na qualidade de vida das pessoas começaria pelo interior até chegar aos grandes centros urbanos. Se tivermos uma grande produção agrícola, nos alimentaremos melhor e o excedente vai para a exportação. Óbvio que isso precisa ser uma bem definida cadeia produtiva, que chamo de autodesenvolvimento ou agroindustrialização, Isso precisa ser estimulado por programas institucionais. Ao mesmo tempo, podemos investir naquilo que temos em abundância. O Vale do Silício, na costa oeste americana, desenvolve-se no meio do deserto. Eles montaram um parque industrial para empresas de tecnologia no meio do nada. Estamos em uma das regiões de maior biodiversidade de planeta. Podemos criar o “Vale Bio”, onde empresas dos ramos de fármacos e cosméticos possam se instalar no Vale do Juruá.
A GAZETA – É possível moralizar a Assembleia Legislativa?
R.S. – Isso é um dever, uma obrigação. Queremos total transparecia com o dinheiro publico, além da inversão de prioridades e respeito às divergências e concepções partidárias. As bandeiras da ética e dos bons costumes não serão mais peças de retóricas.
A GAZETA – Como o senhor conseguiu se eleger sem dinheiro?
R.S. – Essa eleição é uma história construída a muitas mãos. O lema da nossa campanha era ‘Unidos Somos Fortes’. Esses 3.886 votos foram frutos da união dos profissionais em saúde, deficientes, familiares e principalmente dos amigos. Os eleitores acreditaram que é possível fazer política com ética e decência, abdicando de interesses que não são republicanos. Tenho uma enorme responsabilidade com este mandato.
A GAZETA – Um renomado instituto fez uma pesquisa na qual uma das perguntas era assim: o que é política? Nove de cada 10 entrevistados disseram que era ‘coisa de bandido’. Como o senhor interpreta isso, levando em consideração as recentes manifestações de ruas?
R.S. – Estamos vivendo uma crise de representatividade na classe política e em algumas instituições. A política é intrínseca ao ser humano. É a principal ação desde os gregos. A política surge da necessidade de dialogar e de equacionar interesses. Para participar da política é preciso ter grandeza, espírito público e causas para defender na sociedade. É uma arte e vocação feitas para grandes homens. É uma atividade nobre para expor e debater ideias. A imensa maioria dos políticos não defende a coletividade. Estão lá com outros propósitos. Daí a frustração e indignação das pessoas.
A GAZETA – É possível reverter esse quadro?
R.S. – Não tenho dúvidas. Precisamos criar uma nova cultura política, alicerçada em princípios e valores cristãos, além da solidariedade e justiça social. Eu refleti muito antes de entrar na política, pois muitas pessoas dizem que é coisa para pessoas sem caráter e pudor. Temos que mudar a opinião dessas pessoas. Se pessoas sérias e comprometidas não escolherem o caminho da política, deixaremos as portas abertas para os mal-intencionados. Acredito que o Acre pode se tornar um lugar melhor. Assim, não tenho dúvidas que podemos mudar esse cenário de descrédito.
A GAZETA – O senhor defende uma reforma política?
R.S. – Defendo uma urgente reforma política. É inegável a necessidade de modificarmos o cenário político do Brasil, com mais transparência e moralidade nos processos eleitorais e de governo. Atravessamos hoje uma crise representativa global que se manifesta mais visivelmente entre os jovens. Os parlamentares no Brasil precisam entender que estão perdendo os canais democráticos de representação política. A população não compreende a atuação dos poderes estabelecidos. Existem disputas e, muitas vezes, atrelamentos partidários entre o Legislativo, Executivo e Judiciário. A reforma política deve permitir à sociedade participar de forma efetiva dos destinos do país. Defendo uma reforma política decidida por consulta popular, ouvindo a população brasileira.
A GAZETA – O que o senhor acha do financiamento público de campanha?
R.S. – Concordo. O modelo atual é anacrônico e atenta contra o Estado democrático de direito. Os congressistas (quase todos) são donos ou financiados por empresas privadas. O resultado disto é, por exemplo, a enorme bancada ruralista que praticamente faz o que quer no Congresso. O Brasil é um país que, no século XXI, não conseguiu erradicar o trabalho escravo. Se transpusermos esta consequência do financiamento privado de campanha para as cidades, o resultado é o poderio das construtoras sobre os vereadores e prefeitos, alterando legislações que protegem o meio-ambiente e o regime urbanístico, por exemplo. Isso precisa mudar e vamos lutar por essa mudança.
A GAZETA – O senhor agradece muito. Por quê?
R.S. – Por causa da generosidade do povo acreano. Esses agradecimentos também se estendem voluntá-rios que fizeram parte dessa união por um Acre de oportunidades. Estou com o coração transbordando de vontade de mudar o que está aí. Vou me dedicar de corpo e alma neste projeto, defendendo os interesses de nosso povo, de nosso Estado. Por fim, agradeço ainda a minha família e tantos amigos que estão me apoiando nesse novo desafio.