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O cultivo caseiro de plantas e a conservação das florestas do entorno de nossas cidades

O cultivo de plantas pelo homem  remonta aos tempos ancestrais tendo em vista que esse recurso pode servir, dentre outras finalidades, como fonte de alimentação, medicina, ornamentação e, em alguns casos, como parte de rituais religiosos. Embora o cultivo de plantas em quintais urbanos seja uma tradição de longa data que tem persistido de geração para geração, geralmente transmitida por meio oral no seio familiar, sua existência futura está ameaçada porque a terra nua no entorno das residências está sendo ocupada por espaços cimentados e os próprios quintais estão sendo reduzidos ao mínimo indispensável em função da intensa urbanização.

Apesar disso, o cultivo de plantas por habitantes de zonas urbanas persiste nos pequenos espaços verdes remanescentes de seus quintais, em jarros, latas e potes, pois este é uma tradição difícil de ser abandonada em razão da sensação de bem-estar que as plantas proporcionam. Ao persistir no cultivo de plantas em áreas urbanas, os moradores das cidades contribuem, muitas vezes sem saber, para a conservação de recursos genéticos de espécies cuja sobrevivência encontra-se ameaçada em razão da continuada destruição de seu ambiente de ocorrência natural.

Outro aspecto interessante ligado ao cultivo de plantas em residências urbanas é que seu estudo pode revelar interessantes aspectos sociais e culturais de seus moradores. É sabido que em Rio Branco, a partir de meados da década de 70, ocorreu um intenso processo de ocupação de zonas periféricas da cidade por milhares de migrantes oriundos do interior do Estado, em sua maioria ex-extrativistas reputados genericamente como defensores da floresta porque, enquanto extrativistas, ajudaram a conservar extensas áreas florestais no Estado. Mas será que a mudança desses trabalhadores rurais para a zona urbana de Rio Branco alterou essa tradição?

Um artigo científico publicado no final de 2014, de autoria de pesquisadores da Embrapa/Acre, esclarece parcialmente essa questão. O estudo, liderado pelo pesquisador Amauri Siviero, reporta os resultados do levantamento da ocorrência de plantas ornamentais em quintais nos bairros Aeroporto Velho, Placas e Conjunto Novo Horizonte de Rio Branco e suas relações com parâmetros sociais dos moradores desses bairros. A escolha desses bairros baseou-se na hipótese geral de que a população carente que habita em bairros periféricos de nossa cidade é majoritariamente formada por famílias de ex-extrativistas que, ao cultivar plantas ornamentais, tenta reproduzir na zona urbana, as mesmas funções que estas espécies vegetais exerciam nos quintais rurais, como estética, ambiência, abrigo para animais e criação de um espaço de lazer e para o convívio social da família.

A pesquisa da Embrapa/Acre abrangeu 132 quintais dos três bairros citados e resultou na catalogação de 140 espécies ornamentais, pertencentes a 49 famílias botânicas, com destaque para Euphorbiaceae (7%), Arecaceae (6,4%) e Araceae (5%). No que se refere ao hábito, mais de 44% das espécies identificadas eram herbáceas, ou seja, plantas de porte pequeno facilmente cultivadas em vasos de cerâmica, latas ou pneus velhos. Das plantas ornamentais identificadas, 16% também eram utilizadas como medicinais, 5% tinham uso alimentar e 5% eram consideradas como plantas mágicas. Pelo menos 23% das espécies ornamentais identificadas tinham mais de uma utilidade e essa característica é um dos principais fatores levados em consideração durante a escolha das espécies para cultivo em quintais na região.

A maioria das pessoas entrevistadas durante a pesquisa era oriunda do Acre, sendo 55% do interior do Estado. A maioria (+70%) era do gênero feminino e aproximadamente 60% tinha baixa escolaridade (ensino médio incompleto). As principais categorias de ocupações reportadas foram ‘aposentados’ e ‘donas de casa’.

Apesar de a maioria dos entrevistados ser oriunda do Acre, um dado da pesquisa causa consternação: 57,5% das espécies ornamentais identificadas são de origem exótica. Um bom exemplo era o cultivo generalizado de uma palmeira de origem africana, a Areca, fato que exclui o cultivo das espécies de palmeiras nativas encontradas nas florestas do entorno de Rio Branco.

Para testar se a maior riqueza de espécies ornamentais encontrada em um determinado quintal estava relacionada com a origem do proprietário do quintal foi feito um teste estatístico que não revelou relação significativa. Este resultado sugere que os ex-extrativistas, afamados como valorizadores de nossas florestas nativas, ao se mudar para a zona urbana não atuam efetivamente no sentido de valorizar as espécies nativas.  Os autores do estudo relatam que em outras regiões da Amazônia e do Brasil a predominância de espécies exóticas é comum e resulta do intercâmbio e da difusão de material genético, especialmente das espécies ornamentais úteis na alimentação.

Se por um lado se compreende a preferência dos moradores por espécies de uso múltiplo quando do cultivo caseiro de espécies ornamentais, fato contribui para diminuir a proporção das espécies nativas presentes nas residências dos moradores de nossa cidade, por outro é completamente inaceitável, por exemplo, a ornamentação e paisagismo das cidades acreanas ser composta quase que exclusivamente por espécies exóticas. Um dos melhores exemplos desse absurdo é a cidade de Acrelândia, onde mais de 92% das espécies utilizadas na arborização urbana é de origem exótica.

Parece surreal, a cidade está cercada pela floresta nativa, mas as árvores cultivadas são trazidas de longe. Não é a toa que o índice de destruição florestal naquele município já passou de 50%. A população local, vendo-se privada de conhecer a vegetação nativa, não dá a mínima para a sua preservação. Não sabe o valor que a mesma tem.

Se algumas pesquisas tem relatado o fenômeno do estreitamento da relação entre comunidades florestais e áreas urbanas na Amazônia, nas quais as atividades de produção agrícola originalmente praticadas na floresta estão sendo modeladas na periferia das cidades, o resultado da pesquisa realizada pelo pessoal da Embrapa/Acre revela que esse fenômeno ainda não chegou à periferia de Rio Branco. Por aqui decisões baseadas na estética (beleza das plantas) e na sobrevivência (alimentação) ainda falam mais alto. E nesses aspectos, as espécies exóticas estão levando grande vantagem sobre as nativas.

Mais uma razão para nos preocuparmos com o futuro das florestas do entorno de nossa cidade que, assim como no caso de Acrelândia, parecem estar condenadas a desaparecer em razão do desconhecimento do potencial de uso das mesmas pela população que vive ao lado.

O artigo “Plantas ornamentais em quintais urbanos de Rio Branco, Brasil”, de autoria de Amauri Siviero, Thiago A. Delunardo, Moacir HaverrothI , Luis C. Oliveira, André L. C. Roman e Ângela M. S. Mendonça foi publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n. 3, p. 797-813, 2014.

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