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Diva, a extraordinária – a história de uma mãe do seringal acreano

História de Diva Pereira é narrada por jornalista. (Foto: Arquivo de família)
História de Diva Pereira é narrada por jornalista. (Foto: Arquivo de família)

Ela seria a mais sonhada das enfermeiras para cuidar de alguém que a gente amasse muito. Assim eu pensava quando a via em constante movimento, trajando aqueles seus vestidos brancos, com calçados igualmente alvos, confortáveis, propícios para quem precisa se doar e não pode se dar ao luxo de sentir as particulares dores o tempo todo.

Poderia ser também a vovó muito querida dos nossos filhos. Com seu sorriso afetuoso, seus cabelos brancos e curtos, óculos de aros arredondados, seu corpo ultrafofinho, com um colo muito próprio a acolher crianças, adolescentes e – por que não? – adultos.

Nas vezes em que estive em sua casa, não sabia o que fazer para me agradar: “Quer água? Café? Tapioca? Bolo, minha filha?” Ao longo dos anos, por intermédio de sua narrativa e de familiares, fui conhecendo sua história. Ah, que história! Grande protagonista a dona Diva.

Coisa de 40 anos antes, morava no seringal. E como não narro apenas para iniciados na história e geografia do Acre, “seringal” é a área de floresta onde uma população rarefeita extrai o látex das seringueiras.

Nessas ermas paragens, uma colocação – espécie de chácara onde vive o seringueiro e sua família – fica a horas de outra morada.

Ali ela habitava desde os 14 anos com o pai de seus dois filhos. E ali resistia em seu inferno, pois a fera a espancava todos os dias. Por nada. Por qualquer coisa. Porque era louco – não é difícil supor.

E o ódio do homem, Deus saberá sua infeliz origem, não parava de crescer. Carga que ele projetava sobre a esposa, batendo. Com a força nada desprezível de macho acreano, que carrega a genética dos que aprenderam a difícil e extenuante capacidade de sobreviver na selva. Batia nela com gosto, dando vazão à sua sanha.

Diva suportou, durante anos, inúmeras, sucessivas e intermináveis sessões de flagelo, sem ter a quem recorrer: nem família, nem vizinhos, nem polícia. Podia gritar à vontade. Quem ouviria seu clamor lá no fim do mundo? Apenas os filhos, que, congelados de terror, assistiam ao deplorável espetáculo diariamente.

Então, desesperada com o próprio sofrimento, teve uma iniciativa extraordinária para uma mulher submetida àquele grau de opressão: a de salvar sua vida. Iria fugir.

O que deve ter sido a decisão mais difícil e espinhosa que tomou. Porque partir com as duas crianças significaria atrasar a fuga e correr o risco de ser pega pelo monstro. Que, calcule-se, estaria mais furioso do que nunca e disposto, certamente, às últimas consequências. Fora o enfrentamento da vida na cidade, que ela mal conhecia.

Sim, teria que deixar os pequenos. E seu coração se partiu de tristeza.

Ciente da gravidade e das consequências do ato que pretendia, mas brava no propósito, pediu perdão a Deus, aos filhos amados, recomendou-se e foi embora. Sozinha, enfrentou a floresta. Horas e horas. Dias. Correu, caminhou. Até que chegou a Porto Acre, a nordeste do Estado.

Trabalhou aqui e ali, no que pôde, para se manter. Depois arriscou a Capital. E continuou sua luta diária. Então casou-se de novo. E teve outros filhos.

Mas nunca se esqueceu dos que abandonara. Mesmo porque a culpa afligia seu cotidiano.

Até que um dia foi contatada pelo primogênito. Doente, veio a Rio Branco e precisou submeter-se a uma cirurgia. Tendo sido capaz de localizá-la, ela o acolheu em casa e o amparou em sua recuperação. O que certamente fez com grande satisfação.

Então Diva narrou-lhe o padecimento extremo do passado, compartilhou com ele o pesar e pôde dizer: por favor, me perdoe. O filho aceitou.

Depois fez o mesmo com a caçula. Que não conseguiu  desculpar a mãe tão cruel. Aquela mãe que tinha tido a coragem de deixá-la, tão pequena. Aquela mãe que tanta falta lhe fez, por quem tantas lágrimas derramou. Até que aprendeu a detestá-la para poder suportar a dor de sua perda.

Dona Diva lamentou. Mas compreendeu a mágoa da mulher.

Seguiu em frente, cercada de netos. Sua casa era reflexo do seu coração. A parte da frente cedeu a uma filha, restringindo-se a quatro cômodos, no fundo. Em cima morava o filho. E, no grande quintal, em uma edícula, a sogra doente, de quem ela cuidava.

Até que um dia chegou o perdão da filha. E a valente e bondosa Diva pôde viver ainda alguns anos, para ter a alegria de degustá-lo. Até que se foi embora tranquila, como mereceu.

Sei de tudo isso porque sou amiga de seu filho. Aquele que, ainda na barriga, pôde fugir com ela. (Onides Bonaccorsi Queiroz)

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