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As vísceras azedas do legendário patriarca

O pai nascera nos arredores de Birmingham, UK. Ainda em  criança, foi mandado para as minas de carvão de Sir Steve Golden. Escravizaram-no por anos a fio. De lá, saiu depois dos trinta. Dois anos mais tarde, já sabia ler e havia retirado completamente toda a tisna do corpo hercúleo e enegrecido similar à pedra. O século ainda era o dezenove e o mundo gritava de pavor em meio aos estampidos de mais uma guerra a varrer boa parte da Europa.

Depois de haver participado de uma grande confusão de levantinos do sul da Espanha, em Marbella, contra um contingente de policiais, onde foi ferido a golpe de baioneta, fez tratamento no Faro, Portugal e, em seguida, embarcou para o Brasil a bordo de um navio mercante que trazia carregamento de musselina inglesa para uma fábrica de roupas do Ceará, enquanto tinha início a primeira grande guerra que aniquilou milhões de jovens europeus e os seus sonhos apequenados.

Sangue europeu de vasta leitura, foi em Aracati que o caudilho engatou casamento produtivo com uma negra em quem fez doze filhos, todos homens rijos tais quais o pai. Pense num sujeito machista!

E os anos escorregaram por entre os dedos grossos do profeta dos tempos caóticos. Agora, aos domingos à tarde, eram habituais as preleções acerca da existência humana em contato com uma terra onde a honra era preservada aos tiros.

Tais conversas iam do almoço até depois das três, e todos, do mais velho ao mais moço, ficavam ouvindo os arroubos proféticos do velho que sempre começava as advertências com uma mesma frase:

– Vocês são os meus projetos e ninguém há de jogar nada no lixo.

E por aí ele se ia, vociferante, às vezes entre gargalhadas, fazendo os comentários mais diversos possíveis, na base do doa-a-quem-doer, como os que seguem, segundo apontamentos há mais de cinquenta anos apostos em bom papel.

Segundo apregoava o legendário patriarca, o casamento é como um negócio. Se o seu sócio é fraco, você vai apanhar com certeza até que chegue a hora da falência. Logo, nunca queira casar-se com uma moça preguiçosa ou sem dotes. Não que todos tenham a obrigação de unir-se a moças ricas. Importa, no mínimo, que ela não seja gastadeira e economize na hora das compras domésticas. E ninguém duvidava.

Então, um dos filhos mais velhos tornou-se comerciante em vista dos talentos naturais. Com ele, entraram de sócios mais três irmãos maiores de idade e fundaram uma companhia de pesca extremamente próspera sob a supervisão atenta do patriarca sem vícios e sem medos. Naquele tempo, nada mais elegante que os alimentos enlatados. Unidos e diligentes, ficaram ricos em poucos anos. As exportações fizeram regurgitar as suas contas bancárias.

– Marchem pela vida afora lembrando que os irmãos mais moços nunca deverão ser esquecidos, a não ser os que não quiserem trabalhar. – Era o que dizia o nosso caudilho em botas de couro até os joelhos.

E as preleções dominicais eram muitas vezes drásticas, em vista do azedume das tripas do legendário patriarca. Ele rosnava como um leopardo faminto ao fazer declarações incontestes e sempre eivadas das razões mais sólidas em alto e bom som.

Naquele tempo, morava uma família em frente ao grande solar de oito dormitórios da Rua Monsenhor Tabosa, Fortaleza. Eram vizinhos antes prósperos com quem as relações comerciais foram muitas. Mas o pai falecera e a ruína já indicava que a fome mais dias, menos dias, haveria de bater-lhes à porta em vista da vagabundagem dos quatro filhos.

Uma moçoila de uns dezesseis anos, filha única da família endividada, dizia estar encantada pelo mais novo da raça dos morenaços, como se referia o patriarca aos filhos disciplinados sem violência alguma. Acerca do possível namoro, ele fez muitas alocuções.

– Adroaldo, meu filho, preste muita atenção. Não seja besta. Perceba que, por trás dos elogios da família de lá, há uma trama sendo urdida para que você, cabritinho pulador, caia na panela deles.
Segundo o nosso profeta grandiloquente, as famílias das moças sempre tendem a adotar os genros como se estes fossem filhos seus. Ademais, se o menino é bom filho, do tipo trabalhador, calmo, sem vícios, estudioso, de futuro, as maquinações são as mais diversificadas possíveis e caem na armadilha apenas os mais estúpidos, ou que têm os corações amolecidos por anos de bajulação dos que querem lhe manter o laço apertado ao pescoço por décadas a perder de vista.

– O camarada, sem perceber, passa a ficar comprometido até a medula a partir do momento em que dorme na casa da moça. Cuide-se! Visite bordéis e vá aos bailes das estudantes. Vivencie o amor carnal com umas cinco dúzias delas e um terço destas deve ter selo de legitimidade escrito fêmea. – Estas advertências eram repetidas em quase todas as falações domingueiras do profeta estribado demais.

O rapaz mais velho já contava trinta e duas voltas. O mais novo andava na casa das dezessete. E ele prosseguia…

– Meus filhos muito amados. As armadilhas das moças são deveras tênues. Sejam educados, cavalheiros, mas não arredem o pé do seu direito à liberdade de fazer e dizer o que for necessário na hora precisa. Os homens bonzinhos, na maioria dos casos, viram os bobos da corte… E nunca queiram ser um deles. Antes, ser lobos famélicos no deserto atrás de carne.

O caudilho sabia como havia conquistado fortuna. A luta fora desigual entre ele e o destino.Por isso, as ênfases do velho escravo das minas inglesas relativas ao casamento eram enfadonhas, mas realistas.

Conforme carta escrita a um dos filhos, um pouco mais tarde da vida, a hora do desapego é um sufoco. Se o sujeito der a entender à moça que de alguma forma é bom partido e, de repente, resolver pôr termo à pendenga do namoro, quando for chegado o momento de dizer adeus, lágrimas sempre rolarão aos borbotões. Será um Deus nos acuda.

– Mas não é preciso ter pena de ninguém, porque se fosse ela no seu lugar, tudo ocorreria da mesma forma. Na verdade, o risco que corre o pau corre a foice. – Assim dizia o nosso herói das tripas azedas.

De outra feita, os comentários foram mais ácidos ainda. Ele era um reacionário em desfavor do casamento em quaisquer termos. Também, pudera! A crioula, esposa dele, nunca falava nada ou dizia pouca coisa para lhe refrear a língua maldita.

– Mulheres sempre acham que os relacionamentos devem ser eternos. Apesar de todo este tempo de casado, ainda vejo que um casamento com oito ou dez anos de duração já deu o que tinha de dar. É como fruta que nasce, cresce, amadurece e apodrece. Em realidade, não se sabe porque diabos inventaram que todas as mulheres devem se casar, urgentemente, se não a sociedade as condena.

– Agora mesmo, a filha de uma empregada se apaixonou por um Jóca e se casou em dois meses. Coitada da Conceição. Outro dia mesmo, ele bateu tanto nela que eu tive que mandar aplicar-lhe uma surra, nele. Ora, se a mãe apanhou do marido durante anos, porque a filha foi se casar logo com um doido? Gato escaldado deve ter medo de água fria, não é?

Eu, como parente distante do legendário patriarca, aqui e agora, penso no que deixou escrito o Oscar Wilde, segundo quem a única coisa a fazer com os bons conselhos é passá-los aos outros, pois nunca têm muita utilidade para nós próprios, a não ser em certas ocasiões. Prossigamos.

*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

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