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Reminiscências entre letra, melodia, prosa e poesia

Naqueles dias, caminhávamos à toa em delírio esfuziante à vista  da roda da vida a girar levemente, vagarosamente, mas ininterrupta e precisa e cruel e contínua, embora não o percebêssemos. Tínhamos todo o tempo do mundo e a vida sorria às gargalhadas, enquanto volteávamos na praça pública sonhando com a felicidade de braços dados. Éramos felizes, sim, apesar de os dias não serem os melhores em se tratando da pacificidade do mundo aos nossos pés. Como sempre, as guerras. Ah, o Vietnã!

Absortos e embebedados pela história do tempo envolvente, ficávamos boquiabertos com o domínio da história contemporânea por parte de uma professora de descendência libanesa. Também o outro professor, filho de pais portugueses, sabia tudo, desde os hebreus às carnificinas ocorridas nas savanas canadenses de outrora.

Vinha a noite, então… Dias depois, era chegado o tempo da folga semanal. Tudo o que ouvíamos no colégio das freiras era guardado nas pastas de couro cru, em sua maioria, posto que, àquela época, ninguém ainda portava mochilas e muito menos bolsas Victor Hugo ou Louis Vuitton.

Enluaradas ou molhadas noites de sábado, bom era dançar.

Os grandes bailes da pequena cidade eram organizados pela sua pequena e aguerrida burguesia dos confins do mundo, já na subida rumo aos Andes. Enquanto os mais abastados rodopiavam ao som de conjuntos musicais de uma certa qualidade, os demais, nas janelas do clube, apenas se acotovelavam para apreciar os pares dançantes. Ele esteve ali pelo meio, com a avó materna ranzinza. Segundo ela, todos estavam participando do sereno da festa.

Um dia, enfim, o moleque maquinador fez a estreia entre os burgueses rodopiantes e bem trajados, apesar de não ser um deles. Talvez por ser filho de gente pacata, mas ordeira, de lá nunca foi expulso. Muito pelo contrário, algumas vezes fez par com moças que debutavam, ou com algumas que se candidatavam a rainha das flores, no grande baile do mês de maio.

Foi por este tempo que ele passou a sofrer as primeiras dores do amor infanto-juvenil. Ficou apaixonado por uma meia dúzia das ninfetas, ao mesmo tempo. Todavia, apenas uma, não tão bela, houve por bem conceder-lhe a graça do seu bem querer. Foram, sim, felizes, por umas longas duas semanas, talvez. Depois, veio a outra, bela e sensual, com quem um namoro quente foi engatado por uns oito meses, ou mais. Era um tempo de boas colheitas naquele sertãozinho íntimo e úmido.

Os bailes foram ficando, talvez, mais empolgantes, mais românticos, mais instigantes. (Ah, o belo sexo… Como elas são especiais e essenciais em todos os sentidos).

Ia, agora, de braços dados com a namorada e com a fortuna, sonhando com a delícia que poderia ser estar ao lado das outras, de todas, apenas uma por vez, em cada folguedo, é óbvio. Tornara-se, já, um volúvel irremediável cheio das regalias que é ser, antes, bastante simpático, comedido e bem cortês, além de uma certa dose de picardia emanada do manobreiro de palavras que já buscava ser. Sem tirar nem pôr, a poesia é, sim, uma diva que encanta desde que o mundo é mundo e o humano passou a deliciar-se com ritmos, rimas e frases colocadas no lugar mais preciso. Graças a Deus.

Fomos, eu e ela, ao baile das debutantes. Naquela época, era um evento de proporções significativas, posto que, da capital, iam os filhos das famílias mais ilustres, tornados médicos, advogados, engenheiros, dentre outros, apesar dos caminhos que levavam à cidade princesa serem esburacados ou enlameados.

Da capital, para do debut das meninas, também seguiu um conjunto denominado Os Bárbaros. Os moços e uma moça executavam músicas de qualidade indiscutível. O aprendiz de poeta das palavras suaves  –  de ouvidos aguçados já a partir do ensaio  –  ficava extasiado, com os olhos insondáveis, ouvindo a modernidade dos sons saídos de guitarras e teclados jamais vistos por ele antes, e importados a peso de ouro. Tudo era uma perfeição, inclusive o que tange às nuances decorativas, além da beleza das moças resultantes de uma mistura abençoada de portugueses, sírio-libaneses e nordestinos do Brasil. Como elas eram bonitas. Exuberantes, quase translúcidas, diria.

Através da Bolívia, vinham uísques em bem acabadas bilhas de barro. Chamavam-no white horse. Os bacanas filhos da princesa ostentavam um ou dois litros sobre a mesa do bailado.

De carona, o vate promíscuo conseguiu um copo daquela bebida tão cara. De volta ao local onde ficara a musa do momento, misturou-o a um guaraná vigor e duplicou a quantidade. Ela, então, sem tanto imaginar as consequências, em meia hora, mais ou menos, sorveu todo o líquido que os pássaros não bebem. E não deu outra. O baile se acabou antes das duas. Apesar de magro, ele se viu na contingência de guinchá-la até a casa onde ela morava, em frente à praça. Antes, no escuro, posto que as luzes se iam à meia-noite, sentaram-se a um banco onde ela tirou toda a roupa e, em seguida, nele soprou alguns dejetos oriundos da linha do estômago. Para abrir o domingo com chave de ouro, o aprendiz viu o nascer do sol com uma bêbada morta de gostosa dormindo nas suas pernas a sono solto. Coisas da vida.

Um amigo de datas seculares, músico de sopro e corda, como bom artista, meteu-se também a fazer roupas de boa qualidade, principalmente calças, para os que tinham um tostão a menos. Era um sujeito extremamente bacana que se prestava às mais diferentes utilidades, como o Bombril.  Ele andava aos beijos e abraços com a estética e, por isso, chamavam-no beleza.

Foi exatamente este artista cheio de bons préstimos o encarregado de fazer a indumentária a ser usada pelo aprendiz naquele grande baile das flores, em fins de maio.  Como nos anteriores, a cidade princesa parou geral. As costureiras se desdobravam para dar conta das encomendas dos vestidos das catorze concorrentes à rainha. Da capital, seguiu um grupo de músicos, Os Mugs. O poeta colocou camisa de seda e calça de linho. Mas a bela da vez era outra; moça alta, linda e filha de família tradicionalíssima. Seria a conquista do século. Seria.

Antes do baile, todavia, o nosso herói houve por bem ingerir uma bolinha misturada à cerveja, para criar coragem. Já ao som do Milionário, música dos Incríveis, ele adentrou o recinto cheio de pompa e galhardia, sem acompanhante feminina. Foi lá, dançou com a musa e ainda chegou a beijá-la no rosto algumas vezes. Entretanto, mais adiante, serviram um pouco de galinha cujos pedaços vinham acompanhados de tomates que foram engolidos quase sem mastigar, dada a ansiedade geral da nação. E foi aí que o pior aconteceu. A dança era mais ou menos lenta, mas, para aparecer, ele rodopiava mais que o necessário. Daí, o alimento ingerido topou de frente com a substância proibida, o estômago fez uma reviravolta danada e tudo veio à tona. Repentinamente, uma rajada de dejetos subiu do estômago no rumo da boca que havia sido fechada com a ajuda das mãos. Estas, por entre os dedos, deixaram o vômito escapar e melar o vestido de cambraia bordada e as luvas imensas da moça. Caraca!

Não. Ele nunca mais ousou dirigir-lhe a palavra. O coração murchou.

E tudo são lembranças doídas de um passado que, como os dejetos, também escorregou pelos dedos e se foi. Resta lembrar o James Joyce quando deixou grafado que as folhas secas cobrem em abundância o caminho das recordações.

*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

Categories: Cláudio Porfiro
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