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Arma branca, a faca: mata, maltrata e praticamente não tem punição

No primeiro quadrimestre deste ano, dos 93 inquéritos policiais por tentativa de homicídio, 33 foram por arma branca. (Foto: Odair Leal/ A GAZETA)

A posse e o transporte de arma branca (faca, facão, terçado e afins) não se constituem no Brasil em crime previsto no Código Penal, mas em Contravenção prevista no Artigo 19 do Decreto Lei nº 3.688 de 3 de outubro de 1941. É isso mesmo que você entendeu, leitor, um instrumento cujo princípio de uso seria doméstico é utilizado ao longo dos séculos como arma para matar, e nada disso é crime.

Para o conjunto de artigos e códigos que formam o Código Penal ou leis de contravenção, este objeto usado para tirar vidas continua tendo previsão de pena mínima. Dá ‘prisão simples’, de 15 dias a 6 meses, ou multa de 200 mil réis a 3 contos de réis, ou ambas cumulativamente. Contabilizada em uma moeda que há décadas deixou de ter valor até mesmo para referência fiscal ou tributária.

De acordo com a previsão legal da contravenção $ 1º, a pena é aumentada de um terço até metade, se o agente já foi condenado, em sentença irrecorrível por violência contra pessoa. Ou seja, se o agente já tiver matado alguém do mesmo modus operandi.

Acre contabiliza mais de 100 mortes por  arma branca em menos de 18 meses
De acordo com o setor de inteligência da Secretaria de Estado de Polícia Civil, em 2014 foram registrados em todo o Acre 196 homicídios. Destes, 76 foram causados por arma branca, o que representa 38,78% dos casos.

A macabra estatística ficou assim distribuída no ano passado:
Cidade                                               Número homicídios/arma branca
Rio Branco registrou                       35 casos
Cruzeiro do Sul                                07
Tarauacá                                          07
Brasileia                                           04
Feijó                                                  04
Porto Acre                                       04
Acrelândia                                       02
Manoel Urbano                              02
Rodrigues Alves                             02
Marechal Thaumaturgo                01
Porto Walter                                   01
Senador Guiomard                        01
Xapuri                                             01
Plácido de Castro                           01
Sena Madureira                             01
TOTAL                                           76

Homicídios por arma branca de janeiro a abril de 2015, no Acre
Municípios                                      Número homicídios/arma branca
Rio Branco                                      14
Cruzeiro do Sul                              03
Sena Madureira                            03
Senador Guiomard                       02
Feijó                                                02
Bujari                                              01
Capixaba                                        01
Tarauacá                                        01
TOTAL                                           27

Tentativas de homicídios com arma branca crescem em mais de 50% nas cidades acreanas
Quando esta estatística é levada para o número de tentativas de homicídios, a escala se agiganta na mesma proporção em que se torna impossível a aplicabilidade de uma pena real ao crime praticado, perante a Lei.

De acordo com o Setor de Inteligência da Polícia Civil, em 2014 foram registrados 192 tentativas de homicídios, ou ainda inquéritos policiais foram instaurados. Destes, 97 foram causados por arma branca, ou seja, 50,52% dos casos.

Rio Branco registrou o maior número: 35 inquéritos policiais foram instaurados por crimes de tentativa de homicídio, cuja arma usada foi faca, similares, ou seja, arma branca.

O segundo maior município do Estado, Cruzeiro do Sul, também é o segundo em índice de crime de tentativa de homicídio com utilização de arma branca. No ano passado, foram contabilizados 12 tentativas. Depois vem Sena Madureira, com 9 casos, Tarauacá com 7, Feijó e Manoel Urbano com 5 casos cada cidade, até a somatória de 97 inquéritos instaurados em 16 municípios.

‘A solução está com os congressistas em mudar a Lei, ou pelo menos atualizá-la’, diz secretário de polícia do Acre

Para Nilton Boscaro, a legislação, muitas vezes, chega a ser arcaica. (Foto: Odair Leal/ A GAZETA)

Para o secretário de Polícia Civil, delegado Nilton Boscaro, a legislação arcaica impede muitas vezes de se aplicar uma pena rigorosa para a situação de arma branca.

“Embora não seja previsto em Lei que portar arma branca seja crime, alguns operadores (delegados) utilizam como última medida a aplicação do Direito Penal. Mas é necessária a mais urgente intervenção dos legisladores, congressistas e representantes legais para mudar isso. Reformular algumas leis de contravenção que já ultrapassaram o arcaísmo, como é o caso da portabilidade da arma branca e utilização para cometimento de crime. A pena é muito leve, mas as consequências são as mais trágicas possíveis”, disse a autoridade policial.

Nos quatro primeiros meses de 2015, a situação não é diferente
Os números registrados de inquéritos policiais instaurados nos 4 primeiros meses de 2015 demonstram que dificilmente a estatística de crimes tentados de homicídios cometidos com arma branca vão cair, se comparado com o mesmo período de 2014. Pelo contrário, no primeiro quadrimestre deste ano foram instaurados 93 inquéritos policiais por tentativas de homicídios. Destes, 33 foram causados por arma branca, ou seja, 35,48%

A exemplo das demais estatísticas, Rio Branco tem a dianteira com 18 casos, sendo que pelo menos três cidades (Acrelândia, Feijó e Porto Acre) registraram 2 casos de tentativas, cada.

Em 13 municípios foram instaurados inquéritos policiais por crimes de tentativas de homicídios causados por arma branca.

A aplicação da Lei e a pena aos criminosos é um dos grandes obstáculos, levando em consideração que a reforma penal não alcançou uma aplicabilidade de Lei Penal em crimes que continuam sendo legislados por crime de contravenção, ou de menor poder ofensivo.

Uso de arma branca gera muitas vítimas no Acre

Juscelino Nascimento ainda carrega a cicatriz de uma das cinco facadas que quase lhe tiraram a vida em 2000. (Foto: Odair Leal/ A GAZETA)

MIRIANE TELES

Incluindo maio nas estatísticas deste ano, houve 25 homicídios dolosos (aqueles com intenção de matar) com arma branca em todo o Estado. Ou seja, 32% da consumação deste tipo de crime foi com arma branca, pouco abaixo dos 44% referentes aos com arma de fogo. Em junho, registrou-se um aumento no número de ocorrências praticadas com emprego de arma branca.

Todavia, os utensílios são utilizados como apoio para consumação de outros crimes. Como ocorreu com o estagiário Mateus Sena, que teve seu celular roubado esta semana, a partir de uma ameaça de levar uma facada.

O secretário adjunto de Segurança Pública, coronel Ricardo Brandão responde que a instituição está articulando junto ao Sistema Integrado de Segurança Pública (Sisp) e aos órgãos ministeriais uma série de ações para ampliar o combate aos ativos criminais, com abordagem diferenciada ao porte e posse de arma branca.

Nesta semana, um dos crimes que chamaram atenção foi a briga de irmãs por um ventilador no bairro Raimundo Melo. A fatalidade não está na estatística acima, pois foi qualificada como homicídio culposo (quando não há intenção de matar). O depoimento de Viviane Paiva diz que ela teria se armado com uma tesoura e no decorrer das agressões, findou-se com sua irmã Valeria caindo sobre a tesoura, o que gerou sua morte.

As armas brancas são classificadas em sete espécies: cortantes, perfurantes, perfurocortantes, contundentes, cortocontundentes e perfurocortocontundentes. Desde facas, navalhas, terçados, facões, até rolos de massa, martelos, garrafas e katanas.

Histórico de facadas
Juscelino Nascimento sobreviveu a cinco facadas que tomou na Vila Campinas no ano 2000. Uma nas costas, uma no braço e três no peito, que perfuraram o pulmão e levaram a complicações.

“Tava envolvido com colegas e teve uma briga na escola que eu tava. Então fui ajudar, os outros correram e tomei as facadas”, lembra. Em sua reflexão questiona os tipos de amizade que tinha e glorifica a Deus por sua sobrevivência.

James Fernandes conta que teve dois tios que foram alvejados por armas brancas. Um deles, Sebastião Dantas, levou 18 punhaladas. “Ele tinha bebido e era envolvido com drogas, aí foi cobrar a dívida de um usuário e deu nisso”, relata.

O outro tio, Francisco Mendes Dantas é um caso que ocorreu há quatro anos. “Quando ele era jovem, teve uma briga em uma festa e bateu em um cara. Trinta anos depois, ele estava vendendo galinhas no bairro, o mesmo cara se vingou dando uma facada fatal nele”, afirma.

O narrador e sobrinho das vítimas diz que há alguns anos, numa briga em um bar, também teve uma experiência, na qual o desentendimento fez o rival puxar um terçado e fazer um corte em seu rosto. E testemunha: “Sempre foi muito comum as pessoas terem um terçado ou andar com uma faca. A arma de fogo hoje em dia tá assim, nas esquinas tem gente vendendo e alugando arma de 200 e 300 reais”.

Em uma rua paralela, na Rua Rafael do bairro Raimundo Melo, outro caso é popular: a morte de uma figura conhecida da vizinhança, que levou um furo numa briga de bar.

Um vizinho também compartilha que quando tinha 18 anos de idade sofreu uma tentativa de assalto no Horto Florestal. James Fernandes se esquivou com um chute, o que fez levar uma facada no pé. Então com a faca tomada, o assaltante fugiu. “Ele veio com a intenção de me matar” e mostra a cicatriz do furo em seu pé direito.

“O crime evoluiu”, afirma advogado criminalista

“A norma deixou de conduzir seus efeitos e acompanhar a evolução da sociedade”. (Foto: Cedida)

BRENNA AMÂNCIO

O Rio de Janeiro deu um significativo passo neste mês. No último dia 10, o projeto de lei, de autoria do deputado Carlos Minc (PT), que proíbe o porte de armas brancas no estado, foi aprovado pela Assembleia Legislativa.

De acordo com o texto, fica proibido o porte de objetos cortantes como facas, canivetes e estiletes com lâmina maior que dez cen-tímetros. O governador Luiz Fernando Pezão ainda pode sancionar ou vetar a lei.

O texto permite que a polícia apreenda o item e encaminhe à delegacia a pessoa que estiver com ele, sem justificativa, mesmo que não haja agressão. A multa para o portador varia de R$ 2.400 a R$ 24 mil. O projeto prevê que os menores de idades sejam apresentados a um juiz.

O jornal A GAZETA conversou com o advogado criminalista Wellington Frota para explicar melhor como funcionaria esse projeto de lei caso fosse adotado também no Acre. Segundo ele, atualmente, quando uma pessoa é encontrada portando arma branca no Estado, a conduta é considerada atípica, pois o ato não é crime.

O porte de arma branca está previsto no artigo 19 da Lei de Contravenções Penais. De acordo com Wellington Frota, a antiga regulamentação trouxe muita discussão e polêmica no ramo jurídico, sobretudo, porque ficou como uma norma penal em branco. “Ela não regulamentou a questão do porte de arma branca. Na verdade, esse artigo não faz uma referência de forma clara à prática do crime de portar arma branca”.

O porte de arma branca é uma norma que foi derrogada, aponta o advogado. “Quando foi publicada a nova lei de armas (Estatuto do Desarmamento) houve uma derrogação em parte. Portar ar-ma branca continuou sendo uma contravenção penal. Entretanto, não houve uma especificação de como seria feita a permissibilidade dessa conduta. Então, com a regulamentação da arma de fogo, acaba acarretando a utilização da arma branca para o cometimento de alguns crimes. Como a conduta não é criminosa, mas sim uma contraversão penal, os efeitos da prática ilícita são inferiores a você portar uma arma de fogo. Não houve um acompanhamento da lei, que é antiga e perdeu a sua aplicabilidade. Não houve uma evolução social. Então o crime evoluiu, a sociedade evoluiu, e a norma deixou de conduzir seus efeitos e acompanhar a evolução da sociedade”, explica.

De acordo com o advogado, tudo é uma questão de interpretação. Se o magistrado ou o tribunal tiver um entendimento de que aquela arma tinha potencialidade lesiva, pode ser que seja lavrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Com isso, o cidadão é levado para a delegacia e depois responderá pela contravenção no juizado criminal.

O advogado criminalista acredita que o projeto de lei tornaria tudo mais claro, já que o texto contém a regulamentação específica sobre o porte de arma branca. “Ele também detalha qual o tipo de arma branca, se é própria ou imprópria, qual a situação que ela geraria ilicitude”, aponta.

Para Wellington, as leis precisam evoluir com o passar do tempo. “Esse projeto de lei deveria se associar a um novo momento em que a sociedade vive para que haja uma adequação da norma e dos fatos que acontecem”.

Deputados divergem quanto à elaboração de projeto para criminalizar porte de arma branca

Os deputados estaduais Gehlen Diniz (PP) e Juliana Rodrigues (PRB) apoiam o debate sobre a restrição do porte de arma branca; já Eliane Sinhasique discorda. (Foto: Agência Aleac)


MARCELA JANSEN

O debate em torno de um projeto de lei que possa criminalizar o porte de armas brancas nas ruas ainda é um assunto divergente na Assembleia Legislativa (Aleac). Alguns deputados levantam a bandeira de que é necessário discutir o assunto no parlamento estadual, haja vista que os números de homicídios em decorrência desse tipo de arma têm crescido consideravelmente no Acre.
Outros parlamentares se mostram contrários à possibilidade de se iniciar um debate em torno do tema.

Até o momento, não existe nenhuma matéria nesse sentindo sendo apreciada na Aleac. Porém, devido ao projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no último dia 10 de junho, o assunto passou a ter destaque nas rodas de conversa dos acreanos. Muitas pessoas questionam se não existe a possibilidade dos deputados estaduais do Acre elaborarem um projeto tratando sobre o tema.

Quanto ao assunto, o deputado Gehlen Diniz (PP) afirmou que, por se tratar de uma questão relevante e de interesse da população acreana, deveria ser debatido dentro da Assembleia Legislativa. “É possível trazer para a Aleac esse debate, haja vista que como representantes do povo, nós temos que abordar assuntos de interesse da população”, falou.

Gehlen frisa que, embora o tema seja significativo, é importante que a sociedade tenha consciência que o parlamento estadual tem seus limites de atuação.

“A Constituição Federal estabelece as competências para as casas legislativas. A Aleac não pode legislar sobre competência penal. O porte de arma branca já é previsto como contravenção e já tem a pena correspondente. Portanto, nesse caso, não temos competência aqui para alterar a Lei das Contravenções Penais. Mas, como a sanção seria de multa e não pena, esse projeto poderia sim ser levado ao plenário da Assembleia”.

O deputado frisa também que alguns pontos merecem ser debatidos detalhadamente a fim de se evitar a elaboração de uma lei sem eficácia. Para ele, é necessário que se analise primeiramente se o Estado tem condições para fiscalizar a lei.

“O Estado precisa ter todo um aparato para que esta lei não se transforme em uma lei morta como tantas outras. Não adianta se aprovar a lei e o governo não ter os caminhos para fiscalizar e multar as pessoas. Ela não vai servir de muita coisa. Esse é um envolvimento de todos, Estado, parlamentares e sociedade”.

Outro ponto questionado pelo deputado diz respeito à sanção, uma vez que, segundo ele, quem tem o hábito de usar armas brancas são pessoas que possuem o poder aquisitivo pequeno e, nesse caso, não teriam condições financeiras de pagar a multa.

“Uma coisa que deve se atentar é o valor da multa, pois, normalmente, quem porta arma branca são as pessoas que tem menor poder aquisitivo, aquelas que moram em bairros bem simples, mais conhecido como periferia. Se aplicar uma multa de 20 salários mínimos, essa pessoa não irá pagar nunca. Esses detalhes têm que ser bastante discutido”.

A deputada estadual e também advogada, Juliana Rodrigues (PRB), é favorável ao tema. Ela acredita que essa ação irá diminuir o número de homicídios em todo o Acre.

“Enquanto parlamentar, eu acho que seria viável um projeto de lei que pudesse normatizar essa questão, porque realmente tem aumentado muito o número de homicídios por porte de arma branca. Não podemos nos esquecer de que esse tipo de arma também é perigosa. Todo mundo pode portar, sem que aja uma norma que coíba. Eu sou favorável à normatização”, frisou.

A vice-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Redação do parlamento estadual, deputada Eliane Sinhasique (PMDB), salientou que é primordial que a lei esteja adequada com a região Norte. Para ela, não se pode confundir a realidade de outras federações com a do Acre.

“Essa é uma questão que deve ser amplamente debatida, ainda mais quando levamos em consideração a região em que moramos. Minha preocupação é que se criminalize a faca do churrasco, do coco, o canivete de 11 centímetros do escoteiro, por exemplo. Tem-se que atentar para o uso profissional e as circunstâncias que o justifiquem. É importante diferenciar porte de transporte”, comentou.

Para ela, a multa não é o suficiente para diminuir o índice de criminalidade, uma vez que a pessoa terá acesso novamente a uma arma classificada como branca. “A pessoa é presa portando um facão, por exemplo, daí após pagar a multa é liberada. Quem garante que ela não irá novamente adquirir outro facão? Multa não impede que um crime seja cometido. Portanto, não sou a favor dessa matéria”, finalizou.

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