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Parcos reflexos de uma humildade fugaz

Um dia, depois de muito caminhar, ele sentou à sombra de uma imbaúba e refletiu por longas horas. Tão bonita era aquela árvore em suas flores pálidas e leves, e nem por isso se metia a soberba, mas, ao contrário, fazia-se sempre muito aconchegante e simpática a todos quantos se recostavam ao seu anteparo dadivoso naqueles sertões ressequidos pela falta de modéstia. Então, o filósofo do fim dos tempos observou que a sua humildade, a partir do momento em que fosse por ele praticada, realmente, haveria de vencer a arrogância de todos os que se aproximassem do seu pequenino mundo meditativo.

E o pensamento recuou algumas décadas. Como um retrato em preto e branco, ele foi ponderando sobre como as coisas, paulatinamente, foram acontecendo no percurso da sua estrada particular por esta vida afora.

Os caminhos de todos iam se entrecruzando ao seu e, destes entrelaçamentos, ele levava consigo  –  tomava de assalto, talvez  –  parte significativa das experiências absorvidas com avidez a partir do contato com os muitos interlocutores que se iam e regressavam, ou jamais retornavam. Lições e modos de ver a vida foram sendo acumulados, colecionados e, posteriormente, aplicados em meio ao percurso trilhado ao embalar de alguns princípios os mais humanitários possíveis. É maravilhoso fazer o bem sem olhar a quem. E assim ele fez.

(Convém registrar aqui o nome de três benfeitores dos melhores que Deus já criou: Raimunda Euri Gomes de Figueiredo, José Higino de Souza Filho e Antônio Francisco da Silva. Que Deus bem os recompense!)

Num dos albergues ou estalagens erguidos em meio ao longo caminho, a sua alma houve por bem parar por quase quarenta anos, se o espírito não me engana e a verdade não me mente. Afinal, a realidade é dele, do poeta do fim do mundo.

Ali, ele viu, ouviu e ponderou sobre um mundão de problemas e soluções. Havia muitas tarefas, um acúmulo secular de questões solúveis através do arrojo, muitas análises conjunturais, uma infinidade de projetos a serem elaborados e executados. Podia fazê-lo, sim. Aquela terra bem-amada  –  o Xapuri dos seus mais belos dias  –  e a sua gente houveram por bem brindar o poeta e filósofo arrivista com régua e compasso dos melhores, numa referência ao poeta e músico baiano. Ação!

Dos primeiros anos, ele trouxe dos mais velhos a experiência. Óbvio. Dos mais novos, a amizade e o respeito. Eram aqueles outros tempos. Havia um tanto acima de humildade e um bocado mais de respeito entre todos.

Então, passaram-se os anos. Em uma manhã, um velho professor, em dias de se aposentar, conseguiu enfim adentrar uma espécie de purgatório dos recursos humanos e fez pergunta corriqueira acerca do seu futuro. O rapazola mero atendente antipático sequer levantou as vistas e disse que lhe daria a resposta no dia seguinte, um sábado (!), como se fosse fácil a um homem de setenta anos subir escadarias em busca de saber a data exata em que deixaria a sala de aula, esta, uma espécie de fonte de inspiração e respiração, uma vez que os mestres em alta idade sofrem quando deixam o seu labor de tantos anos.

Ali fazia residência a arrogância de mãos dadas com a antipatia. O tal rapazola foi tão ríspido que o velho homem das salas de aula esbugalhou os olhos, ficou pálido, patinou no seco e teve que tomar muita água para engolir o desaforo feito a um homem que fora, inclusive, o mandatário mor da casa de excelência em que se deu o fato.

Por aqueles dias, o rapazola imberbe e pouco sutil tornara-se bacharel em ciências jurídicas com diploma expedido por aquela augusta casa. Como muitos outros, dado o valor real do curso (hoje, o décimo melhor do Brasil), o novo grau lhe subira à cabeça. Estava ele agora acima do céu e de Deus. Pior foi observar que o citado barnabé estava apenas em início de carreira.

E mais. O pretenso profeta dos tempos bicudos ficou a meditar sobre como teria o pequeno príncipe se portado se fosse o coronel dominante de alguma coisa federal. Mandaria o velho mestre à cadeira elétrica. Ele inventaria uma e tornaria legal o seu uso em casos estapafúrdios como aquele. Afinal, fizera-se, com méritos, um jurisconsulto com poder de decisão, inclusive, junto às mais altas cortes do País… Deixa pra lá. São estas apenas miragens de um garoto em êxtase e embriagado ante o futuro talvez brilhante. Que assim o seja, por Deus!

Só mais uma, aí vai. Um outro bom moço havia concluído um doutorado em física nuclear pela Universidade de Stanford. Um dia, foi indagado sobre o que faria da vida dali em diante, ao que ele respondeu:

– Eu não preciso aprender mais nada sobre coisa alguma. Já atingi o status quo do conhecimento, e chega!

O profeta do absurdo se ressentiu de uma falha humana terrível. Na sua época, os mais jovens não eram tão arrogantes. Mesmo as escolas fazendo um papel bem melhor que o atual, há um tempo, ou no tempo das caravelas, a gente mais nova era menos altaneira e mais articulada nas ações que geravam sempre bons frutos. Aqueles eram os homens de antigamente, diria.

Tudo isto ele relatou a mim e pediu segredo. Hoje, o velho lobo das salas de aula está morto. E eu, cá de minha parte, tenho provado e comprovado, realmente, que os nossos bons moços, inadvertidamente, adquirem algum conhecimento e querem ser deuses. Pronto!

O que de positivo um arrogante de marca maior trouxe da família? Muito pouco ou quase nada, posto que ser homem é, acima de tudo, compreender que todos viemos do pó e ao pó retornaremos, numa alusão às Escrituras.

Não. Eu não sou um vetusto, como pensava a desembargadora. Todavia, não sei por quais razões, penso com o tutano de um homem de uma idade bem superior à minha. Coisa de velho, senão reflitamos.

Tenho ensinado aos meus que, ao ter os pés firmemente plantados no chão bruto da nossa história de filhos da terra, o homem estará firme e em perfeito equilíbrio. É preferível descer à humildade e sentir-se seguro, porque na subida do pedestal da arrogância muitos haverão de querer derrubá-lo. Bem pior: é difícil manter-se no alto da montanha quando todos os ventos sopram em seu desfavor.

Disse-me um dia um livre pensador italiano algo muito parecido com o aforismo segundo o qual o homem, quanto mais se aperfeiçoa, mais vê as suas próprias imperfeições. Em palavras mais claras, a humildade é o verdadeiro conhecimento do homem.

Depois, lembro o meu estivador corpulento lá de casa, um filósofo da beira do rio. Segundo dizia ele, no seu linguajar de matuto homem rude do sertão, só se levanta para ensinar aquele que já sentou para aprender. E eu logo acrescento: seja humilde e respeite a estrada que o seu mais velho já trilhou.

*Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

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