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As guerras íntimas da modernidade

Havia tempos em que os dias  fluíam como se fossem longas tormentas, vendavais constantes, tornados bravios, que levavam para longe as roupas do varal da vida e faziam das velhas edificações íntimas apenas o pó do tempo cansado de tanta guerra. Em outras horas, as almas e a natureza eram feitas tão somente de muita paz, da serenidade dos campos em flores sob chuva fina. É por aí que tudo caminhava. Eles se amavam ou se maldiziam um ao outro, a depender das estações do ano ou de como o tempo e o vento se comportavam.

De súbito, ela planejou que, dali em diante, fingiria ser a mulher mais compreensiva do mundo. Entrementes, também ele aparentaria adotar comportamento apaziguador. Em síntese, eles passaram a se auto trair e a enganar um ao outro, tudo dentro da maior normalidade possível, como se isso fosse razoável.

Um dia, então, depois de alguns anos de um jogo de cena tão duradouro, teriam voado farpas para todos os lados. Não ficou pedra sobre pedra.  Palavras e atitudes atropelaram umas às outras. O trem da história descarrilou. As cordilheiras quedaram-se em avalanche. As torrentes formaram imensos caudais. O barraco desabou. O desentendimento se fez irremediável. Cada um seguiu o curso do próprio caminho.

A partir daquele entrevero do ocaso das horas, enfim, ele passaria a viver em paz, posto que acompanhado consigo mesmo. Ela teria o sossego tão merecido em vista das batalhas diárias muito próprias de um relacionamento sem passado, sem presente e nenhum futuro.

No trabalho, a senhorinha encarregada do café do escritório, onde era um dos líderes, nos famosos dois dedos de prosa, disse a ele poucas e boas acerca dos encontros e desencontros da modernidade. Mais tarde, ao pé do muro da vivenda, uma vizinha amiga e o marido, ambos de certa idade, coincidentemente, fizeram comentários muito semelhante ao primeiro.

Na calada da noite, em monólogo de si para consigo mesmo, conseguiu ajudar o travesseiro a pensar e colocou em bom papel algumas argumentações conclusivas, e em síntese, segundo as quais, é provável que os homens estejam se tornando troféus de uma guerra surda travada pela superior maioria das mulheres da modernidade em busca de um sujeito para chamar de seu, mesmo que este seja um cafajeste ou adepto da violência no trato conjugal.

O dia seguinte era um sábado depois da tempestade e da névoa densa. Ele leu os escritos da noite anterior e seguiu ponderando acerca do tema do amor em tempos bicudos.

Enquanto o grande psicólogo do depois da meia-noite, ele rememorou vetustas teorias freudianas e saiu a viajar pelo mundo dos juízos acerca da alma e do comportamento humanos.

A primeira das anotações dizia que, para a maioria das mulheres, notadamente aquelas sem berço e sem dotes, o importante é casar, e casar a qualquer preço, seja lá como ou com quem for.
Significa muito, para estas, dizer para as demais ter conseguido um matrimônio.

Pior é observar a interlocutora que absorve a novidade. Se já não houver casado, sente doer debaixo do pano da costela um trauma dos infernos, o que a faz a mais infeliz das criaturas, notadamente, no caso de os seus janeiros já haverem ultrapassado os trinta. Rolarão lágrimas amargas e mais uma vez o travesseiro pagará o pato por tudo aquilo que jamais conseguiria fazer.

–  Em verdade  –  disse-me uma amiga  –  importa mesmo é casar logo, urgentemente, amanhã se possível, antes que os penduricalhos amoleçam e as geleiras do Alaska derretam.

Para ilustrar, o nosso bardo lembrou moçoila com diploma de nível superior que, enfim, conseguira realizar o sonho de casar-se em véu e grinalda sob as vistas de padrinhos bem vestidos e de toda uma comunidade ávida por tiros de madrugada, romances e traições.

Ela formara-se médica pela universidade pública, o que não é para todos. Especializara-se em gerontologia, ou algo parecido. À custa de um investimento altíssimo e com a ajuda de um tio fiador e dado à agiotagem, montou consultório elegante e bem equipado na rua principal do condado. A clientela, formada por  sabujos de uma guerra do fim dos tempos, logo se fez muito numerosa. Trabalhava e ganhava dinheiro durante oito ou dez horas ao dia. Adquiriu bangalô moderno contíguo ao local de trabalho. Comprou carro italiano conversível. Estava de bem com a vida e quase satisfeita. Não tanto feliz, porque não era lá tão forte de feições e faltava um homem que lhe desse o braço no passeio público e a chamasse esposa.

Foi aí que apareceu o Dégas. Como na poesia do Chico, ele vinha sem muita conversa e sem muito explicar. Apenas disse ser vítima do tal amor à primeira vista. Casaram-se em nada mais que dois meses. Rápido e rasteiro foi o golpe do famigerado encantador de serpentes.

Ele passou a usufruir das benesses de um casamento de oportunidade. Tiveram um garotinho que, ao nascer, já maltratara a mãe, pois pesava quase seis quilos. Ela ficou debilitada e, apesar da academia de ginástica e das mágicas cirúrgicas, para o Dégas, em termos físicos, ela jamais voltou a ser a mesma.

Estava dada a saída para o grande espetáculo da pilantragem. O cafajeste saiu em busca de um amor mais a gosto. Passou a acompanhar-se de menininhas de algumas poucas primaveras ávidas por jantares à luz de velas, iates, carros conversíveis, praias e grifes em joias, calçados e vestimenta.

O casamento tão sonhado degringolara.  Vieram tempos de perfídia e servilismo.

Um dia, enfim, ela leu, em algum alfarrábio, pensamento de Marguerite Yourcenar segundo o qual quase sempre é preciso um golpe de loucura para se construir um destino. Ademais, ela aduziu que a submissão da mulher foi e sempre será algo deplorável, notadamente, quando se lhes colocam à disposição todas as armas para o alcance da autonomia de corpo e alma.

E então, para que as amigas se apascentem, devo lhes dizer que, felizmente, já não sou um articulista científico ou qualquer coisa que o valha. Tornei-me autor de umas crônicas poéticas muito insossas e quase sem fôlego, num tempo em que a poesia morreu e o poeta foi apedrejado pelos que não entendem que a magia da palavra não está apenas nos seus duplos sentidos, e muito menos nas entrelinhas desavisadas desta vida estúpida, nostálgica, mendiga, bandida, sem pé e nem cabeça.

Felicidades, enfim!

*Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

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