O sol estava escaldante, a turba suava em bicas, as línguas estavam secas, mas ninguém arredava o pé.
– Soltem o assassino. Soltem-no já! Soltem-no para que possamos prestar-lhe as nossas homenagens. Bradava em êxtase o grupo que havia sido arregimentado às pressas, uns a pequeno soldo, outros pela esperança de algum benefício futuro, outros ainda sem nem sequer saber o que diziam ou o que ali faziam, apenas repetindo em delírio o mantra que ecoava, por pura diversão e pilhéria.
Não se pode dizer, no entanto, que alguns dentre aqueles no fundo não se identificassem com o assassino, não aprovassem os seus métodos macabros de eliminar fisicamente seus desafetos, de obter o que queria mediante o império da violência extrema. Mas esses tentavam se esconder sob o manto roto de outros argumentos esfarrapados. Alguns, de tão pueris, não possuíam sequer lampejos de seriedade.
Existissem as redes sociais naquela época, era bem provável que até elas tivessem sido utilizadas para fingir uma mobilização espontânea a pedir o assassino novamente nas ruas para fazer o que mais sabia. E o que mais gostava. Como se isso fosse algo de utilidade pública.
Rezam as Escrituras, que ao ser preso, O Carpinteiro foi apresentado ao Pretor romano que, após analisar o caso, não viu qualquer crime a ser punido, mas impossibilitado de flexibilizar o seu poder, e para não parecer frágil ou benevolente, elaborou uma inteligente estratégia. Mandou que trouxessem Bar Abass (o filho de Abass), um frio e sanguinário assassino, um psicopata, cuja escuridão de sua alma encontrava-se nitidamente estampada em sua própria face para quem quisesse ver.
Era o período pascal e, pela tradição, se costumava libertar um prisioneiro na ocasião. Não tinha como falhar. Diante daquele assassino cruel e abjeto, o povo não hesitaria em escolher libertar O Carpiteiro e, desta forma, evitar que Ele viesse a enfrentar o martírio que lhe esperava, pensou o Pretor consigo mesmo. Afinal, Ele só fazia o bem, transmitia paz e pregava o amor ao próximo como o maior poder que haveria no mundo.
No entanto, diante de um Pilatos perplexo, era o nome do assassino que gritava entusiasmadamente o grupelho mambembe.
– Soltem Bar Abass, ele já ficou tempo demais preso. Soltem o assassino, para que ele possa nos liderar. Para que o fio da sua espada seja novamente o nosso guia. Gritavam aos pulos de alegria.
Ouvia-se também: – Soltem o assassino, ele está velho e muito doente. Não pode mais ficar preso.
Mas, afinal de contas, de que doença misteriosa e secreta, grave e terminal, guardada a sete chaves, padeceria o assassino? Seria ebola, câncer, AIDS, gripe espanhola, a febre negra do Cairo..? Porque, convenhamos, de hipertensão arterial, hemorróidas e “suspeitas” de síndrome do pânico, mais da metade da população deve sofrer, sem que isso lhe impeça de cumprir com as suas obrigações diárias e cujo tratamento e medicação adequados são totalmente capazes de administrar e controlar. Como viriam a dizer mais tarde, aquilo não passava de “conversinha para boi dormir”. Queriam mesmo era apenas devolver o assassino às ruas a qualquer custo. Deviam pelo menos ter a hombridade de admitir.
– Mas Ecce homo é inocente, não cometeu crime algum. Não é a ele que vocês preferem? Ainda tentou argumentar o romano.
– Não! Queremos que soltem é o assassino. Respondeu a turba em coro. – No tempo dele era muito melhor. Era muito mais seguro. Ele eliminava os ladrões, os arruaceiros, até os publicanos (coletores de imposto) que nos importunavam. Justiça é soltar o assassino para que ele volte imediatamente para as ruas. Às favas com a Lei.
De fato, muitas das vítimas de Bar Abass, que tiveram o abdomên aberto de alto a baixo pelo fio de sua espada, deixando escorrer assim seus intestinos e depois separando as cabeças dos corpos, a um só golpe, para sua gargalhada estridente de deleite e regojizo, tal qual ele próprio, haviam escolhido enveredar pela escuridão do mundo do crime. Muito embora, diga-se, nenhuma delas se igualasse – nem de longe, a ele próprio em periculosidade ou em crueldade.
Mas, afinal, quem havia lhe outorgado tal poder de tirar a vida de um ser humano, por pior ou mais parecido com ele próprio que fosse? A Lei certamente não era. Desde quando cabia àquele assassino sanguinário a autoridade de dizer quem deveria morrer ou poderia viver?
E, desde quando execuções sumárias e covardes haviam se tornado política pública válida de segurança pública? Francamente…
O que Bar Abass fazia era crime. Crime hediondo. Crimes covardes, no mais das vezes. Simplesmente isso. Nada havia em sua conduta – ou em sua índole, que sequer se aproximasse a algum ato de heroísmo.
O que aqueles inocentes úteis que sambavam e saltitavam em frente ao fórum romano não sabiam – ou não queriam saber, era que aquelas vítimas não haviam sido executadas em uma “faxina social”, com o intuito de livrar a sociedade e torná-la mais segura. Não que faxina social fosse algo correto ou não caracterizasse um crime gravíssimo, suficiente para mantê-lo preso por muito tempo. Mas os criminosos executados por Bar Abass, ou à suas ordens, eram, em verdade, resultados de acordos mal engendrados do submundo. Acertos de contas do comércio do opium com o Oriente ou algum velho comparsa que intentava delatá-lo aos romanos, como constava das sentenças contra ele proferidas.
Manter Bar Abass preso, mais um dia que fosse, violava o Estado de Direito Romano, afirmavam com ares de sabedoria os “Doutores do Sinédrio” (alguns, apesar de se auto-intitularem dessa maneira, mal tinham recebido os ensinamentos iniciais da Lei). Afinal, a oportunidade iminente de soltá-lo tinha custado horas e horas de sono e muito, muito trabalho conjunto. Já tinham ensaiado essa manobra outras tantas vezes, sem no entanto obter sucesso. Mas a hora parecia ter enfim chegado.
Estado de Direito para eles certamente eram as carcaças humanas desovadas pelas vias públicas sem a cabeça ou os membros, anunciadas pelas revoadas de urubus. Obras de Bar Abass e sua horda. Ou os pergaminhos deglutidos a seco pelos escribas, nas poucas ocasiões que ousavam revelá-lo. Isso sim, era Estado de Direito. “Direito do Cão”, não havia sombra de dúvidas.
Muito tempo depois, um humilde estudante, como ele mesmo se definia, Ruy Barbosa, haveria de vaticinar: “onde os meninos camparem de doutores, os doutores não passarão de meninos”.
Mas como soltá-lo a destempo, sem as formalidades que a Lei exigia e, principalmente, sem os exames necessários para se saber se Bar Abass, o cruel assassino, de fato poderia voltar para as ruas e não voltar a decapitar o primeiro que encontrasse pela frente ou que ousasse não cumprir as suas ordens? Soava incoerente. Soava infantil. Aliás, soava irresponsável.
– Vocês têm certeza dessa decisão? Perguntou pela última vez o tribuno.
O Carpinteiro a tudo assistia calado, de cabeça baixa, as mãos juntas a frente. Ele poderia, caso quisesse, sem a necessidade de pronunciar alguma palavra, livrar-se daquelas correntes que o prendiam ou derrubar os legionários que o escoltavam. Havia feito muito mais do que isso. Mas preferiu ficar quieto e calado. Permanecia em silêncio, decepcionado. Esperava que aqueles, a quem tinha estendido a mão, curado as feridas, saciado a sede e a fome pudessem escolhê-lo. Mas, como aquele momento estava a demonstrar, a decisão já havia sido tomada e não pareciam nem um pouco arrependidos disso. Pelo contrário, estavam em êxtase, em festa, pulando e dançando freneticamente. Queriam era mesmo o assassino.
Entre a Justiça e o assassino. Haviam escolhido o assassino.
No afã de encontrar alguma restia de razoabilidade para aquela insana possibilidade, invocavam até o dons sagrados do perdão e da misericórdia. A misericórdia que o assassino não havia tido para com as suas inúmeras vítimas.
Por paradoxal que parecesse, o único homem com autoridade verdadeira para perdoar Bar Abbas por seus crimes com requintes de crueldade e aliviar a dor do seu espírito estava justamente ali, ao lado dele, naquele exato momento, perfilado na mesma esplanada, de frente para aquela turba barulhenta, que fingia não vê-lo sofrer.
Mas até ali, tão perto Dele que bem poderiam se tocar, Bar Abbas se mantinha como sempre esteve durante toda a sua existência, de costas para o Rabi.
Pontius Pilatos então mergulhou as duas mãos na bacia de prata, esfregou uma na outra, sacudiu os respingos e as enxugou em um pano de linho alvo. Fez o que estava ao seu alcance.
E assim, Bar Abass voltou para as ruas. Para continuar a sua saga de crimes. Enquanto O Carpiteiro seguiu a pé para o Calvário.
Dizem que ao sair pela porta do cárcere, Bar Abass não trazia um sorriso no rosto. Pelo contrário, tinha um semblante carregado de preocupação. Sabia que sempre haveria alguém disposto a defrontá-lo com a sua culpa.
Revendo esta velha história, parece que libertar o assassino, afinal, acabou não se mostrando a melhor escolha.
Mas, como diria o moleiro de Sans-Souci, certamente ainda haveria de haver juízes (de verdade) em Berlim.
Sammy Barbosa Lopes, 43, é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre – atualmente afastado para estudos e aperfeiçoamento, membro da InternationalAssociationofProsecutors, ex-procurador-geral de Justiça, ex-vice-presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e da União – CNPG, mestre em Direito pela UFSC e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.