X

Mais uma entediante recomendação à venda


De certa feita, eu já o encontrei numa pose de quem estava sentado a um banquinho, em frente ao mercado dos peixes, peito erguido, sobrancelhas curvadas, cabelos desgrenhados, bigodinho fino, com as roupas sempre repetidas do toureiro espanhol que nunca conseguiu ser; só que nada havia em que se abancar e o pior é que as pernas dele não estavam visíveis, posto que as almas do outro mundo dificilmente mostram os membros inferiores. De lascar.

Geralmente, às cinco da manhã, eu o encontro na subida da ladeira dos oleiros, rumo à esta-ção. Daí sigo em conversa aberta repreendendo-o nas suas estultices de quem, em vida, nunca foi flor que se cheirasse.

Naquela ocasião, ao contrário, ele se viu quase obrigado a me acompanhar na volta para casa. Eu carregava os peixes e caí na besteira de lhe fazer algumas colocações que me incomodam há um bom tempo. Afinal, ele nasceu no final do dezenove e foi morto em fins dos anos quarenta do século passado. Tenho média idade. Preciso ouvir até o que me diz essa alma tonta. Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco e vindo do interior, numa alusão ao poeta do Ceará.

E como é bom conversar com as almas penadas! Às vezes elas nos dão conselhos extremamente úteis. Outras vezes, nem tanto. No meu caso, pouquíssimas vezes.

Afianço a você, meu destemperado amigo Astrogildo Berimbau, que a criação dos filhos é, preponderantemente, um investimento, também, em termos financeiros, sim senhor. Peço até a Deus que não me castigue, se eu estiver errado. Acho um erro crasso gerar e criar um mentecapto que, aos dezoito anos, não demonstra nenhum comprometimento consigo mesmo, com a família ou com a comunidade. Nem creio que existam pais assim, mas eles existem, certamente. Coisas da natureza humana.

Na confluência dos tangarás da vida, repentinamente, ele desapareceu.

Passados alguns dias, talvez quinze, mais uma vez eu o reencontrei no meio do trevo. Ele sumira, anteriormente, como que em busca de argumentos para contestar as minhas ponderações, ou fazer adendos acerca dos filhos abespinhados que ninguém quer ter, mas cria e alimenta a sua malandragem quando, por exemplo, não lhes faz cobranças rígidas em relação às tarefas escolares que devem ser feitas com esmero e pontualidade.

A minha alma penada predileta disse não crer que responsabilizar a criança desde cedo vá macular a sua índole, como se fosse possível. Ao contrário, há de levá-los a pensar sobre como não é fácil atingir certos objetivos na vida.

Não gosto de livros de autoajuda, mas observo que é difícil mesmo. Como diz o Bill Gates, a vida é dura; acostume-se a isso. Da mesma forma que este bem recompensado inventor de traquitanas eletrônicas, também não vejo com bons olhos aqueles humanos estafermos que, mal sucedidos na vida, colocam a culpa da sua inglória nos pais, nos professores ou no sistema. É preciso ensinar os filhos este exercício de hombridade que é fazer o mea culpa.

Meu pai diria:
– Engole o choro, cabra! Assuma os seus erros e, a partir deles, comece a fazer as coisas certas.

Daí eu passei a relatar uma odisseia doméstica muito interessante que se verificou comigo e com a dona patroa mãe dos meus filhos homens.
O meu mais velho nasceu ainda no século anterior. Foi criado em meio aos livros, meus, relativos aos cursos de pós-graduação que fiz por aí afora. Desde cedo, muito organizado, obteve sucesso pleno numa das áreas da engenharia.

Ainda criança, a avó materna lhe presenteou com um pintinho amarelo que se movia a corda. Mexia-se o apetrecho e o brinquedinho começava a andar em círculos. Uma beleza. Durou onze longos anos guardado no cimo de uma estante.

Vieram, então, os filhos mais novos, gêmeos, que nasceram já neste século conturbado. Um dia, quando já haviam conseguido sentar-se, a mãe deu corda no pintinho amarelo e este começou a rodopiar. Um dos bacaninhas, muito forte, gordo mesmo, inventou um teste indubitável. Agarrou-o e fez um lançamento potente contra a parede de alvenaria. Nada sobrou, para o desconforto do mais velho.

Então, eles começaram logo a andar, ainda em fraldas. A casa é bem ampla. Um dia, os dois arrastaram um sofá grande, de três lugares, e, juntos e fortíssimos, fizeram carreira empurrando-o no rumo da porta, esta composta de uma armação de madeira e uma única lâmina de vidro que veio abaixo em vista do choque. Espalharam-se estilhaços para todos os lados. Felizmente, nenhum dos dois se machucou. O anjo da guarda estava de butuca.

Com o conjunto de móveis da cozinha  –  Itatiaia  –  foi bem pior. Eles puxavam as gavetas, uma a uma, e, como se fosse uma escada, subiam e passavam para cima da pia. Daí eles começavam a abrir e fechar as portas de cima com muita força, as duas de uma vez. A mesma operação era feita na parte debaixo do móvel. Em poucos dias, estava tudo destruído. Eles eram muito fortes e agiam enquanto parceiros inseparáveis. E que dupla!

Fora todos os outros móveis que foram destroçados, com raríssimas exceções, os meus gêmeos bonitões ainda rabiscaram toda a casa com gizes de cera apanhados da mochila do mais velho. Quando notamos, todas as paredes da casa estavam repletas de desenhos pouco sugestivos, posto que os desenhistas tinham um ou dois anos.

Só quando eles completaram cinco anos é que foi feita uma reforma completa na casa e móveis novos foram comprados a custos altíssimos.

Hoje, a minha mensagem é intransigente:
– O mais velho me deve duzentos mil reais. Os mais novos, cada um, me devem trezentos mil reais. Somem-se aí os gastos gerais e as mensalidades escolares a preços muito altos. Estão me devendo, meus camaradas!

Passados alguns minutos, eu, ofegante devido o relato e a ladeira íngreme, ouvi palavras sábias daquele Astrogildo Berimbau, um sem teto no céu ou nas labaredas, posto que, parece-me, ele não é querido em nenhum dos dois lugares.

Estava eu bestificado e surpreso por me fazer entender por aquele ranheta dos infernos. Não pensei que conseguiria. Para arrematar a prosa, então, o senhor Berimbau foi incisivo e aceitou plena e prontamente os meus argumentos:
– Preciso concordar com tudo o que você falou. Sim, porque, mesmo aos filhos, os conselhos, as recomendações e as dicas devem ser tratados no plano dos negócios.

Ainda muito cedo, no curso pedagógico, o senhor Faulkner me disse que importa ensinar aos jovens que a vida deve ser levada muito a sério e que a sabedoria suprema é ter sonhos bastante grandes para que não os percamos de vista enquanto os perseguimos.
O resto é olhar para a frente e correr atrás.

*Autor de O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, romance, à venda nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

A Gazeta do Acre: