O Acre foi cenário para as intervenções culturais promovidas pelo autor teatral João das Neves nas décadas de 80 e 90. Sua história de vida e suas obras estão sendo expostas na 26ª mostra da série Ocupação do Itaú Cultural que será aberta neste sábado, 26, em São Paulo.
O artista construiu uma obra marcada por deslocamentos – temáticos, estéticos, físicos. Atento às diferentes realidades e identidades do país, João viveu e desenvolveu trabalhos tanto em seu Rio de Janeiro natal quanto em estados como o Acre – onde tratou de temas como o choque entre seringueiros e latifundiários e mergulhou na tradição dos índios Kaxinawá – e Minas Gerais, seu atual lar – onde investigou, entre outros assuntos, a cultura afro-brasileira.
Em entrevista para A GAZETA, João diz ser gratificante perceber que o trabalho tem sentido e que de certa forma mudou a vida das pessoas. “É emocionante lembrar das pessoas com que já trabalhei. Algumas delas já nem estão mais aqui”, comentou.
Se hoje ele fixou residência em Minas Gerais é no Acre onde recarregas suas baterias culturais. Foi por aqui que ele encontrou inspiração e enfrentou todas as dificuldades para promover sua arte. Por isso, realiza visitas frequentes para visitar os amigos. “Sou agradecido por tudo o que o Acre me proporcionou. E aos amigos indígenas que me ensinaram muito”, confirmou João.
Os indígenas citados por João são os Kaxinawá e outras aldeias visitadas por ele ao longo da vida. “Passei por vários municípios e fiquei instalado por algum tempo em Rio Branco. Ao todo fiquei por oito anos no Acre”, confirmou ele.
Na homenagem, João das Neves, é apontado como uma personalidade singular na cultura do país, também diretor de teatro, formador de atores, desenhista e autor de livros infantis. A sua vida e obra se fundem na resistência, investigação e inovação.
Tributo a Chico Mendes
Foi um período de intensa troca entre os índios e esse homem que, como eles diziam, imita palavras com o corpo. Traços de sua amizade com o seringueiro ativista Chico Mendes são revelados também nesse nicho, ambientado em um chão de terra batida e folhas secas, na peça que fez inspirado na vida e luta do amigo, Tributo a Chico Mendes.
Ela foi encenada nas principais capitais do país pelo grupo teatral Poronga, formado por ele com atores amadores da periferia de Rio Branco. Ali mesmo, o público tem à disposição uma rede para se deitar e ver a projeção no teto de desenhos do artista acreano Hélio Melo.
Um pouco da mostra
A mostra apresenta em quatro eixos as configurações de sua vida, que compõem a obra e, algumas delas, são pouco conhecidas – Anos de Chumbo, Lugares, Identidades e Festa. A curadoria é compartilhada por ele próprio e Titane – cantora e sua mulher, além de colaboradora em diversos espetáculos como co-roteirista ou diretora musical -, com os núcleos do Itaú Cultural de Enciclopédia, de Artes Cênicas, e de Audiovisual e Literatura. O cenógrafo Rodrigo Cohen assina a expografia.
O ambiente é dedicado ao cotidiano do artista, sua convivência com pessoas de outras culturas e comunidades. Encontra-se ali grande parte das expressões populares presentes em sua obra.
São instrumentos do congado, mamulengos, arte do Vale do Jequitinhonha, e indígena, literatura de cordel, fotos de família e objetos pessoais. Depoimentos de amigos falam de suas lembranças, de seu mundo e preocupações presentes em sua vida e obra – como as culturas afro-brasileira e indígena, a mulher, o trabalhador, o homem do sertão, a lavadeira, o sambista, os homossexuais, as travestis, e mais recentemente as novas famílias.
Um dos fundadores do Grupo Opinião – ícone do teatro de resistência no período da ditadura militar -, o diretor segue em atividade, unindo arte e consciência política em espetáculos fruto de uma criatividade inquieta e do contato direto com o povo.
Atuais produções
Neste ano, já dirigiu a peça Madame Satã, em versão adaptada pelo Grupo dos Dez para o Oficinão do Galpão, que estreou em janeiro, em Belo Horizonte, e será apresentada no Itaú Cultural na programação paralela à Ocupação. Ainda no instituto, dentro da Mostra Rumos, neste mês estreou o espetáculo Bonecas Quebradas, um dos projetos contemplados nos Rumos 2013-2014.
Em breve, o artista vai dirigir e atuar na peça Lazarillo de Tormes, que escreveu inspirado na descoberta do que pode ser o texto original da obra criada na Espanha no século XVI. Vai realizar, ainda, um sonho de décadas: montar a peça de sua autoria Yuraiá – O Rio do Nosso Corpo, que retrata a saga da nação Kaxinawá no Acre.
Biografia de João das Neves
João das Neves nasceu, viveu e trabalhou no Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores do Grupo Opinião, com o qual participou de uma série de montagens em espaços de arena. Fez teatro de rua com o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional de Estudantes (UNE).
Neste período fez a sua primeira ruptura com o espaço cênico tradicional. Quebrou o teatro por dentro ao criar para o espetáculo O Último Carro uma ação que se desenvolve em volta do público deslocado para o centro e inserido na ação.
Rompeu com o sistema artístico estabelecido e com o assédio do mainstream ao se decepcionar com os atores que passaram a se distanciar da produção teatral no palco, atraídos pelo sucesso fácil das incipientes telenovelas.
Atualmente em plena produção, mesmo com mais de 80 anos, João das Neves tem várias encenações em circulação: A Santinha e os Congadeiros, que, com elenco de congadeiros, levou ao palco um mito fundador das Irmandades do Rosário do Congado mineiro; Besouro, Cordão de Ouro e Galanga Chico Rei, ambos também com temática afro brasileira, em uma parceria de sucesso com Paulo César Pinheiro, autor dos textos e músicas; Zumbi, de Augusto Boal e Gianfranesco Guarnieri, com música de Edu Lobo; A Farsa da Boa Preguiça, texto de Ariano Suassuna, e Aos Nossos Filhos, de Laura Castro.