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A modernidade do casamento entre os tendenciosos

Sempre acreditei no que dizia o  padre velho casamenteiro e juiz  de paz da freguesia lá perto de casa. Segundo o pregador metido a doido, com quem trabalhei enquanto serventuário de cartório, o casamento é o fim do romance e o começo da história. O vigário era cearense nascido em Quixadá. Estava sempre certo e apressado como se os ovos fossem, a qualquer hora, sair pelo gurgumin. Sujeito bom era aquele!

Um dia, o reverendo encontrou o pândego Isaías da Hora; este um frequentador assíduo do antro de peripécias indizíveis de todas as noites de todos os meses completos, desde o rés do chão da história dos primeiros tempos de orgia.

E a conversa foi longa, meio dramática e cansativa para ambos. O pároco queria apenas ver uma alma a mais livre das tormentas do inferno.

Passaram-se uns meses, então.

Eis que o senhor Da Hora, veio, daí, a tornar-se uma espécie de gerente geral do prostíbulo. Quase dono do lupanar. A ele as meretrizes recorriam em busca de problemas e à cata de soluções para as vicissitudes da vida de quem joga o corpo na cama, como os que deitam sobre o pano verde da mesa os ases do baralho depois de perdido o jogo roubado.

Alaíde Preciosa, uma deusa vencida de saias rodadas tais quais ela mesma, era a pior das afoitas dentre as comensais. Dela, vinham as perguntas e as paródias mais complicadas e relativas à existência humana entre becos escusos e camas bolorentas.

E a Preciosa havia sido estudante de um liceu em Portugal. Incontáveis, então, eram as narrativas burlescas da sua vida de prostituta infanto-juvenil.

De certa feita, há décadas passadas, conforme relato impudico dela mesma, nas adjacências da escola, depois de levar cantada sublime de um transeunte inteligente e pecaminoso, tascou:

– Pois não, moço! Sou eu Leonor ao deu inteiro dispor. Não vejo porque criar problema com um homem tão pachola e tão bonito como vossa mercê. Aqui, neste caso, não vem ao caso. Eu sou casada lá em casa. Lá em casa e que fique bem claro. Deixa está!

Uma Salomé, uma Messalina e uma Lady Godiva. Isso é o que ela ainda é.

Um dia, então, fez ela pergunta um tanto sem nexo ao pilantra de bigodinhos cofiados e sebosos de nome Isaías:

– Para que casar se o futuro é a morte que está logo ali? Importante é a diversão, o barulho, a prevaricação, o vaivém, o doce pecado. Vamos ver no que dá, isto porque alguém tem que ceder e eu já estou cedendo desde algum tempo. Ora bolas!

O Senhor Da Hora ficou encafifado com aquelas tantas indagações a lhe corroer o juízo sacana. Felizmente, tinha residência fixa e uma santa que lhe lavava as ceroulas e cozinhava o de comer. Em casa, ele perguntou à casta esposa sobre as opiniões desta acerca do casamento entre os modernos. Ela viera de uma celebração católica dominical e estava pronta para as ponderações mais razoáveis possíveis.

– Ora, Zazá! Se o casal mantiver as promessas que foram feitas ao pé do altar; e se lembrarem que se casaram por amor e não por sexo, os dois cumprirão a sentença segundo a qual o casamento está para a felicidade, assim como a castidade do celibato está para a Igreja.

O senhor Isaías da Hora, homem inculto e dado às estripulias noturnas em cabarés, não entendia muito o palavreado da esposa escolarizada, mas compreendeu que nada ela percebia de libidos entre alvoroços, estrelas e labaredas.

Depois, na zona do baixo meretrício, em conversa frugal com o Joaquim Pancada, português baixo, branco avermelhado, bochechudo e de bigodes pretos, ele se viu com uma cabrocha, a Anabela, ao colo, a quem perguntou acerca das suas impressões sobre o casamento com o finado Ludovico, morto há pouco mais de meses, ainda jovem e afortunado.

Ela, uma rapariga da pá virada, teceu comentários rápidos e bastante lúcidos:

– Opá-Opá! O nosso casamento não foi mais que uma grande e bela amizade. Nós dois não fomos feitos para ficar em porta-retratos ou em paredes de salas. Nunca precisamos de alianças, ou papéis assinados para manter-nos juntos e unidos. A música tinha de ser leve e, com alguma sorte, havia sempre algo bom para beber. Assim era a nossa união.

Em síntese, estão certos os mais antigos segundo quem a fortaleza do casamento é a mulher. Se ela desistir, o barraco vai ladeira abaixo levado pelo aguaceiro das ilusões perdidas.

Sócrates, o grego, não tinha efebos. Dizem-no um dos poucos da sua época que não fazia as costumeiras rasantes homossexuais. Era bom de porrada. Comenta-se que metia medo o seu corpanzil de mais de metro e noventa e a inteligência fora do comum. Daí foi que veio uma ponderação sublime segundo a qual, em todo o caso, casai-vos. Se vos couber em sorte uma boa esposa, sereis felizes; se vos calhar uma má, tornar-vos-eis filósofos, o que é excelente para os homens.

O filósofo estava certo. Comigo aconteceram as duas coisas.

Ainda quando viandante por este mundo de travessuras, uma noite, dei de cara com um cidadão que fazia pilhérias com o casamento ao citar algo muito parecido com o que vem a seguir. Era o Miguel Esteves, livre pensador português radicado em Botafogo, Rio.

Dizia ele mais ou menos que tem sorte o casal em que um prefere as pernas do frango e o outro, o peito. É este um dos segredos de um bom casamento. Mas não tem tanta sorte o casal em que ambos gostam mais das pernas. Ao princípio, dão muitos saltos e gritam que são iguaizinhos, mas não tarda perceberem que as igualdades não só aborrecem como enfurecem, levando a tédios e guerras e, fatalmente, ao tédio das guerras que é a morte do casal. O mesmo acontece com os feitios opostos. Atraem-se e fazem faísca porque não são capazes de estar juntos. O corte de energia, aí, ainda chega mais depressa.

Sim. Entre os hodiernos, homens e mulheres despudorados deste terceiro milênio, as coisas são bem contraditórias quando estes se referem aos relacionamentos conjugais, inclusive, entre pessoas de gêneros semelhantes.

Por isto, rendo todas as homenagens aos relacionamentos abertos e faço questão de apresentar à distinta sociedade a falência do sacramento do matrimônio. Nos dias que correm, todo mundo é de todo mundo e ninguém é de ninguém, até que a morte os separe antes de mais nada, numa escapada, à bala, em plena avenida de oito pistas, ou num flagrante delito em qualquer beco escuso ou ponta de esquina.

Vigiai e orai, pois não sabeis quando será chegado o dia ou a hora… Com todo o respeito, é claro!

*Escritor, autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e também na DDD / Ufac.

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