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ARTIGO CLÁUDIO MOTTA: Dois raios de sol e meio palmo de lua

PARA A GAZETA, NOS SEUS TRINTA ANOS DE VIDA PLENA

Era preciso dormir pouco e sonhar bem mais. Todavia, em  muitas daquelas ocasiões de sol a pino, não era coerente sequer deixar-se dominar pelo sono e, por isso, os sonhos aconteciam mesmo enquanto acordados. Uma beleza! Desta forma, com um olho no futuro e o outro nos bons exemplos dos caudilhos de antanho, assumia as rédeas do próprio destino toda uma geração de idealistas e construtores das utopias mais factíveis de que se tem notícia neste lado de baixo do equador.

Num dia de um passado distante, então, um menino quase moço travou consigo próprio batalha que lhe exigiu muita força, por anos e anos a fio. Tudo era urgente e inadiável, apesar dos poucos anos de vida e experiência alguma.

Nascera em berço de madeira mesmo. A sua história seria bem escrita, posto que, já na origem, como pregava o velho pai, muitos houveram por bem dizer que a vida é dura para quem é mole.

Aquela era a hora. Ele conquistaria, sim, o tesouro vislumbrado pelos antepassados cearenses. Sonho vivido desde quando foi dado à luz de um dia qualquer do século anterior. Eram dias de um tempo em que os mais experientes diziam aos mais novos que a única forma de conquista da liberdade é uma terrível luta corporal e espiritual cujo objetivo é fazer-nos apossar do conhecimento e torná-lo útil aos nossos ideais. Trato, aqui, somente de utopias realizáveis. Elas existem, sim.

O menino e moço, meio encabulado e meditativo, postava-se no umbral da janela da vida e do destino a olhar para o raiar de um dia de boas novas que mais e mais se avizinhava e não tardaria a chegar.

Mais tarde, a lua falava também em viagens distantes, amores passantes, colos aconchegantes, dores dilacerantes, visita refratária, lógica precária, vida calma, glórias até mais tarde sob o sol morno do subúrbio social. E ele calmamente pensava. Para si, como para todos, o futuro é logo ali na curva daquela velha estrada empoeirada e cheia de obstáculos gigantescos e atalhos íngremes.

Aqueles eram tempos em que os hinos marciais exortavam os mais jovens à bravura, à luta, à guerra, desde que fosse do lado dos generais de sangue frio como as lâminas das baionetas. Anos sessenta e setenta.

E, através de um hino composto por Antônio Sarno, o rapazola magro pensava da mesma forma que planejaram os militares donos do poder.

Avante, camaradas!

Ao tremular do nosso pendão

Vençamos as invernadas

Com fé suprema no coração. […]

Era uma ideologia de cunho maligno que se disseminava entre os mais novos, infelizmente. Por trás das belas palavras, uma propaganda raivosa retirava dos jovens pobres a mais básica condição de sequer pensarem em ser felizes.

Veio o tempo de servir às armas. Marchou célere pela floresta afora com um fuzil à mão, e mais uma tralha de muitos quilos às costas. Outros cânticos de guerra foram entoados.

Em fins dos tempos de chumbo, o bom rapaz partiu em busca de um futuro com armas mais leves nas mãos. Levava consigo algum dinheiro reservado para suprir as primeiras muitas necessidades e uma vontade férrea de vencer na vida como vencem os mais audazes. Ainda, no fundo escondido dos velhos alforjes da consciência, transportava um tanto de conhecimento que lhe havia sido transmitido pelos honoráveis homens e mulheres que lhe serviram de professores lá na cidade princesa.

Fico grato, sempre. Como a gente daquela terra é tão magnânima. Coisa de Deus!

Da mesma forma que a grande maioria dos nascidos por aqueles rincões benfazejos, tinha por certo que a grande finalidade e o objetivo maior a ser perseguido seria a aquisição de conhecimentos, posto que estes são armas que lhe fortaleceriam pela vida afora. Ele estava certo. Pertinácia.

Como o Manoel Oliveira, homem de Portugal vizinho seu das utopias realizáveis, ele tinha certeza de haver gostado de ler as entrelinhas de Fellini, o cineasta que dizia ter uma grande admiração pelas pessoas que falham e persistem.

Elas persistem com a mesma vontade, ou mais forte, com a ideia de alcançarem a finalidade última. Considero-me um pouco dentro dessa classe.

Havia certamente foco. É perceptível. Tudo já se iniciava exigindo força, tenacidade, vontade, olhos pregados no futuro e coragem para dar conta e vencer as empreitadas mas duras possíveis, sempre contando com o auxílio dos mais experientes que aqui estão com o objetivo de ajudar na busca do que é mais certo e na certeza de que dar as mãos é seguir sempre em frente e com muito mais confiança.

E tudo isso para a eterna glória e em honra do nome dos que, lá na velha vivenda, ou fora dela, acreditam-no e têm certeza do quanto ele poderia fazer por si mesmo e, mais tarde, por outras pessoas com as quais sequer ainda travara contato.

Um dia, então, o moço da cara morena adquiriu gosto pela própria obra. Mas o trabalho era estafante. Durante o dia, labutava enquanto servente de pedreiro nas obras do calçamento das ruas da cidade princesa. À noite, seguia para a escola noturna onde estudava para ser professor. Era o que havia por lá. Muitos queriam dar aulas em qualquer ocasião da vida. Alguns se tornaram advogados, inclusive o irmão procurador federal. Um número mínimo de médicos saiu da divina providência. Dois ou três engenheiros, e só.

Depois, só bem depois, é que, realmente, tomou gosto pela própria obra, agora, trabalhando novamente na construção civil, na capital, onde, mais uma vez, auxiliou os pedreiros da construtora do Kipper, um homem benfazejo e magnânimo a mais.

Mais tarde, só muito mais tarde, ele veio a tornar-se mestre e doutor, com todas as letras, posto que lhe assinaram dois diplomas outorgando-o enquanto tal.

Mas aí as coisas já eram outras. Também se fizera servidor público federal concursado e os ralos caraminguás se tornaram vencimentos vultuosos para um rapazola de vinte e um anos, hábitos humílimos, ganhando vinte e dois salários mínimos.

A vida lhe sorriu mais uma vez. As moças do bairro o queriam para marido ou amante. Ele sempre preferia a segunda situação, dado ter-se tornado um deambulante entre corações e mentes por este mundão de meu Deus afora.

Os textos toscos e as poesias mal enjambradas por ele escritos eram sempre engavetados, inclusive, os memorandos da repartição. Daí, num dos dias do setenta e oito, a alagação levou tudo.

Numa dessas horas felizes da vida, há vinte e cinco anos, um negrão alto e magro lhe pediu que escrevesse um texto para A GAZETA. O dito rapazola, então, cometeu a primeira sandice e disse ser uma crônica tão precária quanto as demais.

Ainda hoje os editores o toleram. Que Deus lhes abençoe!

*Escritor, autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e também na DDD / Ufac.

A Gazeta do Acre: