Claudio Motta *
Naquele dia invernoso, ainda manhãzinha, o menino do dedo azul esfregava os olhos na soleira da porta da casa humilde da rua das castanholas. Espreguiçava-se. Estava ainda sonolento aos onze de idade e com responsabilidades como aquela. Dormira cedo e, agora, às cinco, deveria correr, acelerado mesmo, até a padaria, onde estava o pai com os pães quentinhos feitos há pouco por ele e por alguns outros padeiros.
Com pés de vento forte e rasteiro, era preciso correr mesmo porque, ainda um pouco escuro, a cabeça fervilhava lembrando as histórias que lhe contavam os mais velhos, tios e avós cearenses cheios de crendices, acerca das famigeradas almas do outro mundo prestes a se materializarem e a se manifestarem a qualquer momento a partir dos velhos casarões erguidos no início do século anterior, na cidade principesca.
Hoje, o menino diz ser muito bom lembrar a época em que a cidade era bem feliz na sua miscigenação feita por portugueses, sírios, libaneses e nordestinos do Brasil. Quanta gente obreira fez o pioneirismo daquele rincão. Quantas boas almas vieram de tão longe para ali plantarem os seus destinos e vidas no mais das vezes tão prósperas.
O pensamento voa, então. É como viajar por aí, pela Ásia agressiva, pela Europa em guerra e pelo Nordeste brasileiro onde a fome expulsava homens amarrotados, esqueléticos, mas de tanta fímbria.
À lembrança, sim, vêm muitos deles que hoje já fazem parte de outros mundos onde, por certo, continuam a sua obra gloriosa em favor do bem-estar de tantos.
Viajar na imaginação é algo fantástico. Como diz o livro sagrado dos hindus, nós vamos voando por aí, mesmo em sonhos, sem limites, porque a alma é uma coisa que a espada não pode ferir, o fogo não pode destruir, que as águas não podem maltratar, que o vento do meio-dia não pode secar. Por isso somos assim. Em milésimos de segundos, o nosso espírito viaja até o país do sol nascente, e volta tão rápido quanto foi. Poderia ser dito tratar-se de espíritos vagabundos esses que vivem à mercê do tempo e do vento, pra cá e pra lá, meio sem ter o que fazer da vida.
A caminho da padaria, a memória do menino do dedo azul voltava-se tão somente para a possibilidade de uma aparição, ali, no meio da rua, debaixo da mangueira centenária plantada por Sadala, um próspero libanês que por ali viveu há muito tempo.
Certo é que, pelo menos naquela época, nenhuma criança merecia passar por essa fase da vida sem umas boas histórias de assombração, sem uma ou duas casas misteriosas nas circunvizinhanças. Hoje, já não é mais assim. A gurizada, às voltas em meio ao cyber espaço, já não tem medo de nada, nem das maluquices contadas pelos avós ávidos por pregar peças e fazer surpresas aos netos boquiabertos e medrosos, como era lá em casa. De arrepiar.
Diziam ser o menino um sensitivo em grau médio. Mas a avó era mediúnica de alta patente e de certos poderes. Melhor ainda é que também havia pelo meio uma tia que até conversava com almas do outro mundo como que por esporte.
A tia, metida a celebridade, era a mais velha dentre os seis filhos da avó. Por estar em um estágio avançado, em termos de mediunidade, pegava caboclo como quem conversa com a vizinha. Algo quase inacreditável. Às quintas-feiras, era dia de sessão, principalmente, depois que ela casou com um cearense que também tinha possibilidades extra-sensoriais. Lá, ela deitava e rolava. Às vezes, dialogava com os espíritos, outras vezes batia boca mesmo, em uma voz rouca e grave, usando expedientes até pornográficos… Minha tia era do balacobaco!
Um dia, a tia estava doentinha e fraca. Já marcava mais de quarenta voltas. Aí pelo meio dia, no quarto soturno, uma vez mais, ela teve a rede embalada, suavemente, por duas mãos masculinas, ao que ela fez comentário atroz:
– Porra! Primeiro, aparecia alma da cintura pra cima, sempre. Agora, me vem uma alma apenas com as mãos. Reprovo. Eu gostaria de ver os pés das almas.
Não deu quinze minutos e lá estavam uns dez pés, de coturnos, em marcha como se fossem para a guerra. Pense numa doidice!
Ela era do tipo que dizia assim:
– Traga uma camisa sua, que esteja meio suada, e eu faço aquela quenga largar do seu pé. – Ou:
– Traga uma libra de velas e umas dez folhas de mucuracá, misturado com tipi, e o América sairá vencedor da partida de amanhã. – Era batata!
Um dia, à tardinha, ela passava, acompanhada de um tio, pela esquina da Maçonaria com a cabeça rente ao muro. Veio uma danada de uma alma do outro mundo e sapecou-lhe um cascudo, um cocorote tão potente que ela passou cinco meses com dor de cabeça. Sacanagem da grossa!
A avó ficava seis meses no seringal e seis meses na cidade em atendimento às filhas que residiam cá e lá. Quando ela estava no principado, as capacidades da tia perdiam a graça. Só dava a velha. Todas as aparições ficavam para ela, que também sabia mexer com os pauzinhos e tinha certeza de onde as corujas dormiam. Ela era do caráter!
O grande barato, entretanto, era a casa ao lado. Segundo reza o populacho, ali haviam morrido pelo menos uns dez cearenses e mais um português de nome Ozias e um turco chamado Oded.
Sobre algumas dessas maluquices, o menino do dedo azul serve, ainda hoje, enquanto testemunha, como quando, por várias vezes, ao cair da tarde, quando a avó se sentava à calçada para apreciar o movimento mínimo da cidade pacata, começavam a ser atiradas pedras de bom tamanho que rolavam, como se percorressem uns dez metros, pelo assoalho de madeira da casa fechada e sem nenhum morador, como se não houvesse paredes internas. Lá atrás, na cozinha, panelas caíam ao chão e fa-ziam um barulho ouvido por qualquer transeunte que fosse chamado a ouvir.
Um dia, o estivador, que tomava de conta das chaves da casa vazia e à procura de locatário, no momento das ocorrências macabras, abriu a porta e lá, como era sabido por todos, realmente, não havia pedras e muito menos panelas.
Nos idos de 1930, a prima da avó morava na casa ao lado. Elas eram muito unidas e se comunicavam por intermédio de um buraco – formado pela ausência de um nó que caíra da tábua grossa de castanheira – na parede de madeira que separava as duas casas. Eis, então, que a prima vendeu a casa e foi morar com o filho na rua das mangueiras. Mas a fenda, através da qual passavam xícaras de café pra lá e pra cá, continuou aberta e, um dia, não se sabe o porquê, a avó resolveu olhar através do buraco. Quanto ela botou a vista, veio do lado de lá, rapidamente, de encontro, um olho enorme que se chocou contra a madeira fazendo um barulho de vidro partido. Arre égua!
Sem muito o que fazer, o buraco foi tapado com argila e passada alguma tinta por cima. Nunca mais ninguém teve coragem de encarar a tal brecha excomungada.
Com tudo o que por ali aconteceu desde antes da revolta, incluindo chacinas e emboscadas, segundo os especialistas, razões de sobra havia para que tais fenômenos fossem vistos e sentidos.
Durma-se com um barulho desses!
*Escritor, autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e também na DDD / Ufac.