Na manhã cinzenta, recostada a uma cadeira de balanço, ela se acomoda rente ao alpendre envidraçado da velha casa de acolhimento. A alvorada mal principia e o barulho maior é o cantar dos galos e das outras aves que brindam o amanhecer. O céu pede clemência e chora lágrimas de uma garoa fininha. A montanha verde faz o vento soprar frio, lá fora. Arbustos retorcidos pelo tempo ladeiam um córrego cristalino adornado por carpas amarelo avermelhadas. A sobrevivente respira, já, o ar da oitava década plena. Apanha um velho xale e um caderno acanhado, e continua as suas anotações habituais, a lápis. Há todo o tempo que lhe resta de vida destinado ao relato das suas memórias.
O ambiente é a região montanhosa do sul de minas, bem próximo à cidade de Poços de Caldas. Para ali fora enviada a soldo de um amigo de muitas datas e algumas posses materiais, que já a houvera salvado de poucas e boas, inclusive, de uma que quase envolveu a perca da vida ainda antes dos trinta, numa época em que ela, referindo-se a ele, passou a usar um codinome, o protetor solar.
Francesa de nascimento, saída de La Rochelle, Juliette por aqui chegou ainda aos vinte e poucos anos. Viera para compor o corpo de baile do ‘teatro de revista’ recentemente montado em uma metrópole amazônica. Viveu a sua época áurea no esplendor do ouro branco que corria de uma árvore nativa. Foi feliz na juventude. Naquele tempo, já a beleza incomodava a umas e a outras tantas que a invejavam e sempre queriam para ela o pior. No dizer dos da terra, ganhou rios de dinheiro. Mas, casou com um magnata que a repudiou e a trocou assim que algumas partes do corpo da musa deram sinal de leve declínio. Ingrato é o mundo, mas o bicho homem é muito pior.
Muito triste, sentindo-se rejeitada, passou a fazer uso de droga muito pesada. Um dia, então, a convite de uma amiga de peleja, zarpou para uma zona de garimpo próxima ao pantanal. Tornara-se prostituta de alto preço numa seara onde ouro e tiros eram a tônica das relações desumanas. Com o dinheiro ganho em três anos de função, partiu para a cidade de Guaíra e ali muito bem se instalou em casa de quatro cômodos, três dos quais alugados a moças louras belas gaúchas também empreendedoras do ramo do orgasmo. Amealhara pequena fortuna e, com cuidado e jeito, nunca mais passaria pelos perrengues que viveu no garimpo. Claro que teria dois ou três amantes que a sustentariam nos seus vícios e luxos. Segundo ela, aquilo ali era uma terra de homens abastados, pacatos e de poucos ciúmes. Uma beleza!
Guaíra prosperou dividindo os louros com Salto Del Guairá, no Paraguai. Não faltavam as condições físicas e climáticas patrocinadas pela belíssima paisagem estrelada pelo rio paraná e os seus encantos. Bom foi ver que a cidade se transformou em uma das mais belas do Sul, posto que o turismo se tornou o ponto forte da economia do lugar.
A ninfa e musa viu nas possibilidades de importação do uísque paraguaio a sua tacada de mestre, uma vez que o turismo o exigia. O fascínio pela riqueza a fez tornar-se poderosa, uma vez que as mulheres não são tão fiscalizadas pelas autoridades, dentre outras manhas próprias do povo de cá. Enfim, o negócio prosperou a olhos vistos.
Em visita à cidade vizinha, ela viu a possibilidade de cirurgias modeladoras que lhe deixariam rejuvenescida. Colocou enchimento nos peitos e na bunda, e retirou gordurinhas indesejáveis da barriga.
Eis que a beleza inquietante voltou a aparecer. Também a inveja das mulheres reverberou.
Uma noite, então, em visita a Assunción, cedo ela chegou em um bordel disposta a apenas tomar um uísque que não fosse falsificado. As demais mulheres do lugar ficaram intrigadas com a beleza da cinquentona. Ela, então, muito presunçosa, chamou-as de índias feias e peitudas.
Ora, o alvoroço foi geral, porque àquela hora da madrugada o uísque dava as cartas. Uma briga generalizada começou entre as mulheres que tinham como alvo apenas espancar a franco-brasileira infinitamente mais bela. Eis então que uma cadeirada sobrou para o nariz da sobrevivente que já caiu desacordada. Levaram-na dali para um hospital de quinta categoria, onde foi iniciado um tratamento.
Para desespero da musa, a cura não ocorreu, mas, sim, aconteceu que ela findou porapanhar uma tal bactéria hospitalar que, a cada dia, evoluía e a saúde regredia.
Foi então que ela houve por bem, mais uma vez, dar um telefonema para o antigo protetor solar, agora vivendo feito um nababo no Rio de Janeiro.
A situação estava precária. Os médicos paraguaios teriam dito que já não havia mais nada a fazer. Os músculos do rosto da diva haviam inchado a não mais poder. Uma febre alta e intensa atestava a gravidade invasiva da bactéria. Ainda pior foi o fato de lhe haverem tomado todo o dinheiro e documentos. Estavam perdidas ela e a causa… Só Deus.
Em pouco mais de hora, um jatinho já estava ao dispor da enferma. Em minutos de voo, ela chegou a Curitiba, onde foi imediatamente encaminhada para um hospital muito bem referenciado.
Passados dois dias, ela só piorava. Foi aí que os médicos resolveram que a levassem para casa, onde, muito provavelmente, a bactéria não evoluiria em vista dos cuidados muito especiais. Nada disso aconteceu e na madrugada ela passou muito mal.
Foi aí que uma das empregadas comentou sobre a possibilidade de levarem-na para uma aldeia indígena, a jusante de Icaraíma cerca de quarenta quilômetros seguindo pelo rio Ivaí. Era a única providência a ser tomada naquelas alturas dos acontecimentos.
Às oito da manhã de um dia ensolarado e quente, colocaram-na em uma padiola e foram de barco até Prudentópolis. De lá seguiram, de carro, para Icaraíma e daí para a aldeia.
Ás seis da tarde, um índio de idade alta já a conduziu para o meio da floresta por mais de uma hora a pé. Lá chegando, pediu que os transportadores da padiola voltassem para a aldeia. Em seguida, tirou toda a roupa da beldade, colocou sobre ela um cobertor muito grande e grosso. Daí, o médico selvagem passou a fazer uma fumaça que, a partir de um braseiro portátil, invadia o pequeno ambiente onde estavam ele e a paciente. A cada hora, era ministrada uma caneca de chá de uma erva diferente e ela dormia mais uma vez envolta na fumaça que lhe limpava os poros.
Fato é que, às seis horas da manhã, já estavam de volta para a aldeia, a pé. A sobrevivente vinha sorrindo e, sem mais espera, empanturrou-se em uma espécie de cuscuz regado a leite de ovelha. Estava curada.
Ao protetor solar e ao mundo, ela e todo o povo de Guaíra são unânimes em afirmar que a medicina convencional desconhece os meios utilizados pelos indígenas para a cura de doenças tidas como incuráveis entre os brancos.
Ao final das anotações, a renascida deixa registrado em papel almaço que os brasileiros nada têm a aprender com a disciplina dos nipônicos, nem com a objetividade dos americanos e muito menos com a flexibilidade dos chineses. As nossas fontes de aprendizado estão aqui mesmo. Os nossos índios são sábios e nós ainda não temos consciência disso.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero.