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No limiar de um tempo qualquer

Ao Pitter e ao Cícero, bons amigos de copo e de cruz.
Tinham medo de tropeçar na sua história sem eira nem beira. Talvez, na ânsia por ultrapassar os obstáculos existenciais, tenham deixado cair pedaços rotos das suas vestes amarfanhadas e cansadas de tanta peleja. Por isto, caminhavam, todos juntos, olhando por baixo, bem rente ao rés do chão de um tempo cheio de boas novas, grandes acontecimentos, ocorrências leves, destas que existem só a pretexto de não deixarem a vida virar rotina. O museu das grandes novidades a que o poeta se referiu estava posto aos seus pés de anjos sacanas em piscadelas à moda dos faunos vivos e volúveis destes nossos dias de glórias pertencentes tão somente a nós.

Um dia, então, por ele, ela se apaixonou. Nada demorou e, por ela, ele também já morria de amores. E o pior estava por vir. Uma concubina manhosa houvera por bem postar-se no coração do poeta, mesmo à porta, de espada em punho e em riste, de forma a impedir possíveis assaltos repentinos que, por fim, vieram a acontecer.

Não havia mandinga ou remédio que desse jeito. O destino determinou que fosse, ali mesmo, naqueles corações miúdos, atrapalhados, corriqueiros, formado triângulo amoroso, libidinoso, incestuoso, pecaminoso, mas muito gostoso, gostoso a perder de vista, como previra o analista de bordel.

E por aí saíram, de mãos ou braços dados por esta vida afora, o poeta, a prosa e a poesia. Despidos de qualquer licença, não estavam nus, mas plenos de muitos floreios, metáforas e prosopopeias. Assim é que eles entravam em qualquer boteco nos sonhos do norte, ou nas asas do sul. Tomavam notas e faziam versos em guardanapos meio cerimoniosos por verem que, para eles, alguns olhavam e perguntavam de si para si quais os motivos de tanta consonância entre prosa e poesia. E tudo regado aos sabores da melhor cerveja do mundo, a da vez.

E agora, sob os auspícios desta instituição genuinamente brasileira denominada boteco, entre brindes e outras saudações em linguagem sutilmente cifrada, a vida corre folgazã e, de quebra, permite até que alguns versos sejam cometidos.

Depois de molhada a palavra, a sede se faz contínua rotina. Beber é saudável, desde que o desavisado fique de sobreaviso. Eles misturam fiapos. Tecem fios de memória. Cortam frases. Costuram retalhos. Emendam nesgas e fazem uma prosa poética escorreita, cheia de amor para dá e para receber, como há muito não se tem notícia por aqui. E haja anotações que – de repente perceberam! – houveram por bem, já, exceder as seis voltas ao redor do sol. É tempo demais. Tempo que não dá tempo a ninguém e muito menos aos mais apressados. E eles, juntos, então, pensavam sobre quando tudo aquilo seria um livro.

Ademais, é melhor brindar a saúde dos homens, porque a das mulheres a gente brinda todo santo dia… Ah, essa doce arte de compreender as mulheres, dentre elas inclusive as mais belas.

Consta que os sábados à tarde, no mais das vezes, estão reservados para um fazer poético moderno. Algo entre a poesia práxis e a poesia processo em palavras escorregadias que fluem rumo a um funil que jorra, pródigo, falando, sem cerimônia, da vida que vai por entre os dedos de cada ser. Dizem coisas muito parecidas com a criação de Pignatari e Chamie.

Os textos são bem acesos feito o fogo da paixão nova. São incontáveis os fatores que dizem respeito, sempre, à inexorabilidade e a fugacidade do tal destino, que nos premia ou castiga com coisas que vão além das surpresas e dos sobressaltos em que quase o coração pula pela boca ante tanta paixão por viver.
Em outra hora, já depois da sétima badalada, eles ainda têm tempo de fazer uso de um estilo mais livre de versejar, bem à moda daqueles que lá atrás fizeram a semana de arte moderna de 1922.

Talvez tenha sido escolhido para derramar esta prosa exatamente por também eu ser adepto dessas igrejinhas tão adoráveis chamadas botecos.

Em tudo que exala da obra, há, como jamais deveria deixar de existir, as mulheres que pairam acima dos demais seres pulsantes. Ali sempre estiveram, como sempre estarão retratadas as mais sensuais e as não menos belas. Também estão pinçadas mesmo as que passam logo ali, no passeio público, e até aquela musa idealizada que povoa o pensamento sob os eflúvios etílicos de quem vai e de quem regressa não sei de onde.

Tenho observado nestas INQUIETUDES POÉTICAS que tudo é tão familiar, mas não corriqueiro. Tão simples, mas não vulgar. Rememoro, pois, o dia em que este manobrista de palavras, inspirado em Vinícius, deixou escrito que dar flores empresta lirismo à alma feminina. Joias de certo preço, perfumes suaves e roupas íntimas podem dizer mais que um poema manjado recitado pela alma arredia de um homem insensível e levemente rude. E o que mais…

Sim. Grande parte das rasantes poéticas são inspiradas nelas. Também a meninice cabocla salta aos olhos de qualquer que se aventure às viagens fantásticas em meio a páginas de tanto talento. Também corre o rio acre latejante nas veias de quem um dia viu e viveu o seringal iracema de tantas histórias. Há a vida que flui mansamente em um poema denominado Uma coisa. Mais acima ou mais abaixo, rendi-me a uma poesia chamada O homem. Vi aí os próprios autores que vão mais fundo, alçam ao mais alto, veem mais longe, enxergam o invisível.

Pensei em degustar, pois, uma porção qualquer do tatu ao leite da castanha do brasil.Depois, na fita breve do pensamento vi um quadro de Matisse que, da mesma forma que estas POESIAS E CRÔNICAS DE UM MUNDO EM MOVIMENTO, foi elaborado por mãos tão carinhosas, tanto o prato, quanto o livro, quanto a pintura.

Em uma aventura colossal, não apenas li, como viajei por entre páginas arrebatadoras, por cima de cumes e cumeeiras, montanhas, florestas, desertos. Por tudo isto, eu dedico uma canção a quem você ama e recomendo, veementemente, a leitura da vida que segue.
Avante, rapazes!

Rio Branco, Acre, setembro de 2016.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance ‘O inverno dos anjos do sol poente’, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero.

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