Em um aposento acanhado, vivia a analista de dois mundos, entre um e outro, tentando enxergar as anomalias de cá e de lá. Tocava um clarinete soturno, melodioso, à boca da noite, no dizer das gentes pernambucanas. Era uma bela solteirona. Estava no sangue não se acompanhar de ninguém que amanhecesse e anoitecesse debaixo do mesmo teto que ela. Apelidaram-na a profetiza dos tempos bicudos. Outros a rotulavam enquanto uma comunistinha de meia pataca, que via tudo de ruim entre os componentes das duas realidades ali testemunhadas e as suas relações ambíguas, nocivas, imorais, deletérias, no dizer da antropóloga de quem aqui tratamos. Havia, em realidade, uma corrosão efetivada pelo veneno étnico e social chamado discriminação.
O prédio de quatro andares tinha um acabamento de excelente padrão. A analista social era também professora e elaborava escritos extensos nos quais citava desde Hesíodo a Lévi-Strauss, passando por Bastian. O bairro, de classe média baixa, era contíguo aos alagados do Recife, de forma a que de cá se podia ver detalhes do que lá se passava, e vice-versa. Por um golpe de sorte houvera por bem ali montar residência. Ela própria dizia que, para os seus estudos e para a sua vida acadêmica, por um golpe de extrema sorte, a sopa caíra no mel com uma exatidão milimétrica, miraculosa, perfeita como uma imagem bem enquadrada.
Foi a partir do seu posto de observação dos contrastes sociais ali reinantes, que ela filmou, algumas vezes, uma menininha de mais ou menos cinco ou seis anos, que atravessava a avenida, ainda cedo da manhã, por intermédio de uma passarela muito alta, e vinha ver, do lado de cá, outras duas crianças, da sua mesma idade, muito provavelmente, que brincavam em um grande jardim cercado por alambrado imponente em manutenção, talvez, trimestral, considerando a vizinhança miserável e, por isso, extremamente violenta.
É notório que as capitais nordestinas do Brasil, via de regra, têm uma nesga litorânea rica que acompanha a sinuosidade das praias, com edifícios portentosos e jardins belíssimos, atrás dos quais, como que escondida, vive a ralé sempre disposta a fazer o serviço sujo da elite vizinha. Lá está a lavadeira, o gari, o engraxate, o pistoleiro, o zelador, a diarista, o pedreiro, o larápio sem gravata e a prostituta embonecada.
Na sala de aula, pois, a analista pouco cautelosa, referindo-se às crianças, fez comentário sintetizador daquelas realidades tão díspares e tão brasileiras:
– Eu vi a cara do preconceito e ele estava fantasiado de nu e cru. As elites brasileiras, devagarzinho, vão colocando os menos pobres contra os mais pobres, até que o caos se instale de uma vez e esta parcela da sociedade, como um todo, passe a fazer parte da anomalia social chamada pobre de direita, que é exatamente aquele que não vê que o patrão o quer sempre de olhos vendados e vivendo apenas das migalhas tenras que caem das mesas e banquetes dos mais aquinhoados. O Carnaval está sempre chegando. Há cada vez mais circo e maracatu, e cada vez menos alimento na mesa dessa gente faminta.
Então, a menininha, alvo da discriminação nos jardins da mansão, tinha cabelos louros e acima de encaracolados, rebelados, bem ao feitio dos nordestinos do litoral, descendentes de uma época em que franceses e holandeses por ali fizeram a festa. Ela estava vestida praticamente em andrajos. Os cabelos desgrenhados e o nariz escorrendo davam o tom do abandono a que estava submetida. Uma chupeta rota amarrada a um paninho sujo completavam a indumentária miserável da criança. Oh, dó!
O contraste era avassalador. Pobreza e riqueza separadas por um alambrado sisudo e desumano como um porteiro de cinema. Os pais das outras duas crianças tinham empregos razoáveis e estas, ao contrário, eram muito bem cuidadas. Considere-se que o jardim era o quintal de uma mansão que ficava de frente para a rua paralela.
– Observei que, de certa feita, os três tocaram os dedinhos uns dos outros através do alambrado, talvez querendo fazer uma amizade, como se isso fosse possível. – Foi o depoimento da professora quando entrevistada na sala de aula de um colégio de filhos de gente rica no bairro de casa amarela.
Um dia, um moço foi – pelo menos é o que parece – entregar uma encomenda qualquer e deixou o portão semiaberto. A menininha entrou e passou toda a manhã brincando no jardim com as crianças, que não tinham ainda inculcada a dimensão do preconceito social muito próprio daquelas adjacências.
Perto do meio dia, então, uma moça em uniforme azul-escuro e branco, com as mãos na cintura e gesticulando de forma acintosa, colocou a menininha pobre, quase aos safanões, pelo portão afora.
A analista, então, houve por bem verificar mais amiúde os fatores em geral e descobriu que, na realidade, o casal de crianças bem cuidadas era filho de uma pequena família que residia nos fundos da mansão e prestava serviços para os bacanas proprietários do grande imóvel. Constatou, ainda, que a família formada por um motorista e uma lavadeira residira, antes, ali bem próximo, na parte norte da região dos alagados, de onde a pequena saía.
As ocorrências, no geral, levaram a analista a lembrar o seu tempo de criança, filha de costureira, quando era enxotada da casa de uma família, onde ia brincar com umas amiguinhas, filhas de um casal cujo pai era motorista de táxi, a mãe exercia atividades domésticas, em casa, e o menino mais velho tinha a mesma profissão do pai.
Importa considerar, aqui, que o preconceito mais exacerbado é o que se verifica do pobre para com o pobre. Basta uma pequena melhoria de vida para um se sentir melhor que o outro e passar a agir como se estivesse ao mesmo nível do patrão que escraviza qualquer assalariado.
Se os humanos todos compartilhassem atitudes de benevolência e tolerância, o mundo seria pequeno para tanto pacifismo e, aí sim, estaríamos preparados para o que os místicos e espiritualistas chamam a era de aquário.
O preconceito enquanto conceito preconcebido está sempre pronto a induzir o humano ao erro, uma vez que a alma de uma pessoa não se expões assim logo à primeira vista. Há os que dizem que, quinze minutos depois do primeiro contato, do olho no olho, através das atitudes e frases iniciais, já se pode perceber mais ou menos com quem se está lidando. E deste fator provém outro erro que é o do julgamento precipitado.
Cuido em pensar que a ideologia da oportunidade tem sentido neste caso. Às pessoas devem ser dados meios para que estas se revelem através das suas consciências forjadas nos bons estudos, nas boas escolas, nos bons livros. Se assim não for, o humano não prosperará e o preconceito estará apenas numa fase inicial do seu processo de aniquilação das nossas relações sociais sob o signo do dinheiro.
Nas Sagradas Escrituras está anotado (Eclesiástico 3, 24) que o preconceito extraviou a muitos e as más suposições desviaram os pensamentos dos homens.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero.