Como a afogar-se embriagado em um mar de alegorias e outras metáforas redondas, que se estendem a partir da vida do humano rumo ao infinito, estava o saltimbanco perambulante num daqueles gloriosos sábados à tarde enquanto participante de um folguedo regado a champanhe e uns quitutes com nomes bem clássicos, assim do tipo ratatouille, cassoulet e bouillabaiss. Chique a perder de vista.
Depois de dois dias à procura de amigos que há alguns anos houveram por bem residir no sudeste francês, ele enfim os encontrou. Já não eram dois. Ao casal, haviam se juntado mais três moças, digamos, de média idade e residentes nas circunvizinhanças do delta do rio Ródano.
A região da Provença, hoje, tinge-se deste matiz social terrível para as mulheres, que é a falta de homens. Daí a importação desse espécime raro – e caríssimo! – nesta parte ocidental do mundo sob a égide da civilização judaico-cristã.
Arles, cidade francesa localizada no delta do rio Ródano, muito próxima à foz, no Mar Mediterrâneo, bem os acolheu, uma vez que o casal era formado por dois artistas plásticos do ramo da pintura e da escultura, respectivamente. Uma das moças tocava música brasileira na noite provençal, a outra cantava e a terceira era uma espécie de enfermeira e cuidadora de idosos ricos de várias nacionalidades, em um albergue campestre ali bem próximo.
Em tese, a vida houvera por bem sorrir para todos, pelo menos em nível material. Todavia, depois de alguma bebida e de o sol se haver posto por trás dos Alpes-Maritimes ao longe, começaram a surgir os queixumes próprios das mulheres de certa experiência que se aventuram em viagens conjugais, ou meramente libidinosas, com cavalheiros de conduta ambígua e bem menos tempo de vida.
As andanças pelo mundo da psicologia fizeram o saltimbanco lembrar mais ou menos o que deixou escrito a Senhora Duras, segundo quem há ilusões que se parecem com a luz do dia; porém, quando acabam, tudo com elas desapareceu. Muita gente da laia das carolas já fez essa maldita viagem ao mundo dos ilusionistas e oportunistas e se deu muito mal. Mil e uma desilusões. Quanto sofrimento!
Uma das divas desta nossa belle époque, então, completava uma idade qualquer. Muito já se houvera dito, posto que os teores etílicos, àquela altura dos acontecimentos, já haviam alcançado patamares significativos, tendo em vista os decibéis das gargalhadas no salão do hotel no qual o grupo festejava a prosperidade relativa.
Depois de uma participação extremamente afinada em que interpretou Edite Piaf em Ne me quitte pas, a cantora se foi, ao cair da noite, à tiracolo com um maridinho uruguaio de vinte e pouquíssimos anos. Os comentários foram estrepitosos, logicamente.
– Ela foi largada pelo marido de mesma idade e, para se vingar do pilantra que se foi com uma ninfeta, arranjou esse malandro aí, sem eira, nem beira e, agora, o está sustentando no estilo cama, mesa e banho. Coitadinha.
A enfermeira nada demorou e também se foi porque o amante menino mínimo não bebia espumantes. Os comentários gerais giraram ao redor do mesmo fator. Segundo uma das convivas, a situação só não era idêntica, mas deveras semelhante.
– Ele vivia nas praias do Rio flauteando quando encontrou a Isabela, já aos quarenta e muitos anos. À noite, em um dos botecos do Beco das Garrafas, eles juraram amor eterno e, agora, ele já está com o passaporte vencido esperando ser expulso da França. Felizmente, ela garantiu que não irá, mas há de se esforçar muito para que a situação do maridinho mambembe seja regularizada e ele fique perto dela.
A violonista não trouxe o marido porque este é o dito caseiro que só sai de casa para se acompanhar com umas moças da idade dele, que ainda estão no viço da pós-adolescência.
É claro que os comentários sobre ela mesma seriam bem mais ricos em detalhes.
– Eu saio para trabalhar às onze da manhã e volto às quinze. Depois, vou às dezenove e volto à uma da manhã. Hoje é o dia da folga. Enquanto descanso, ele se esbalda. Depois, chega em casa para dormir quando já estou em sono profundo, em alta madrugada. Incrível é que é do interior de Minas, mas nunca trabalhou. Durante o dia, a partir do despertar, ele se faz acompanhar de cervejas finas de uma adega suprida por mim. Não gosta de qualquer queijo e exige tão somente o Saint-Nectaire, tudo à minha custa, é claro. É apreciador de cigarros caros, perfumes, joias e roupas finas. E o pior é que agora por último eu disse que o nosso lance estava em fase terminal, ao que ele me jurou de morte… Não sei mais que medida tomar. Estou deprimida e não vejo solução.
Em síntese, esta é uma realidade latente entre os ditos modernos. São quase maridos novinhos em folha, com a libido a todo vapor, sequiosos por vida mansa, dotes de viúvas e aventuras, preferencialmente, com moças mais novas, enquanto as consortes que lhes garantem o sustento caro e as mesadas a perder de vista têm as suas vidas ameaçadas. Coisa de malandro escolado no Brasil com o objetivo de fazer exatamente da forma que vem sendo feita por milhares de outros.
Enfim, estávamos quatro pessoas de fino trato, todas com mais de cinquenta voltas, profissionais bem-sucedidos cada um no seu métier, fazendo elucubrações acerca da vida um do outro. Sobre fracasso e sucesso, amores e contratempos, felicidade e desânimo, fidelidade e infidelidade. Sintetizadoras, pois, foram as palavras da Winnie, a dama do violão:
– Meu bom amigo. Já não mais fazem maridos como antigamente. O capitalismo engendrou os enganadores com os quais hoje nós temos o desprazer de nos fazer acompanhar deles. Os rapazes da nossa idade se casavam direitinho, trabalhavam, construíam e mobiliavam casas, pagavam impostos e colégio para os filhos, planejavam férias em família, compravam carros, iam à igreja… Veja só o que hoje nós vemos. São entes parasitários encostados em árvores frondosas e de bons frutos de quem eles só querem arrancar o néctar, o dinheiro. Isso é o cúmulo.
Ali, apenas os homens nada tinham a reclamar. O pintor estava vivendo muitíssimo bem com a escultora. O terapeuta das ilusões perdidas, já a acercar-se das sessenta voltas, portava-se, então, como um psicólogo a ouvir e a anotar, mentalmente, palavra por palavra daquelas que se diziam vítimas do destino e dos homens. Dois dos amantezinhos que lá estiveram trocaram apenas alguns meneios de cabeça entre si. E só.
Então, ao fim e ao cabo de toda aquela tertúlia barulhenta, de braços dados com uma garçonete de pouca idade, sentindo-se um paxá de origem latina, o saltimbanco foi sorver o ar frio do Mediterrâneo às onze e meia da noite.
Talvez tenham razão os que dizem que as moças de pouca idade costumam gostar dos homens mais velhos por verem neles qualidades não encontradas nos de outras idades.
Já eu nem sei se acredito tanto nisso. Fico cabreiro mesmo.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO . Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero.