Ele rabiscara em guardanapo branco os dois primeiros versos de uma melodia de Noel. Logo, então, chegou o homem da gravata preta, colocou o lembrete na bandeja por entre as garrafas e copos sujos e o levou ao moço do instrumento de cordas. Os acordes eram um tanto compassados para o ambiente, mas, mesmo assim, o músico entoou o samba canção.
O notívago, já em estado etílico animador, olhou para a dama da primeira mesa e lhe soprou um beijo. Ela sorriu.
A musa o conhecia de algum tempo, já, daquele mesmo lugar de todas as sextas. Sempre o observara enquanto um moço solitário que portava um livro e dificilmente levantava os olhos da leitura, a não ser quando servia para si próprio mais um copo da bebida habitual. Ele tinha as sobrancelhas sempre franzidas, arqueadas, os olhos calmos e perturbadoramente doces vistos, agora, pela primeira vez, quem sabe. Quarenta voltas ao redor do sol, talvez menos. As roupas eram elegantes, mas dele poucos ouviam a voz, posto que, por polidez, costumava falar baixo e comedidamente. Era de meia altura e de meia idade. O homem da bandeja dizia dele ser um gentleman.
Não demorou muito e os dois tomaram o rumo da zona sul da cidade a bordo de um opala preto translúcido. Portando-se como o cavalheiro que era, em primeiro lugar, apesar de sabê-lo de averiguações anteriores, ele perguntou o nome da moça bancária na rua do ouvidor, afora outras perguntas que sempre são feitas por gente digna que busca companhia de outras de fino trato.
Ao fim e ao cabo de trinta minutos, ou mais, agora percorrendo estrada asfaltada dos arrabaldes da cidade, ela, pela primeira vez, fez a observação que lhe cabia:
– Vejo você enquanto um homem polido, mas de poucas falas, inclusive, quando vai ao banco, às segundas pela manhã. Pouco levanta os olhos… Gosto muito disso, uma vez que a formação em Literatura me leva a apreciar personagens do seu estilo. Alguma leitura marcou em mim essa certeza. Talvez o Hemingway.
A resposta a seguir era, sim, desinteressada, mas fez o diálogo tomar rumo bem inesperado:
– Leio os clássicos e vi em Balzac – talvez em Ilusões Perdidas – algo que me recorda a presente circunstância. Eu jamais me perturbaria com uma observação como esta. Você está a dizer que o meu espírito anda sempre cabisbaixo… Admito-o. É este o modo mais prático através do qual posso encontrar uma moeda de bom valor, ou um bem querer que dure umas boas décadas. Eu não mais me permito tropeçar no chão da minha própria história. Pode ocorrer, sim, mas procuro sempre errar pouco, ou errar menos, ou não errar.
Aquele início de verão se fizera de um doce adocicado, leve, brando, fluído, almiscarado, melífluo, cheio de espumas borbulhantes, como um resto de onda do mar. A vida é realmente muito bela, principalmente quando se busca, a dois, beleza em tudo.
Nos meses seguintes, a diversão predileta era encontrar aspectos comportamentais que identificassem uma à outra alma. Em tudo eles eram parecidos, até nos planos de conhecer a Europa a partir de Lisboa, indo a Madrid, passando pela Barcelona de Miró e Zafón, chegando a Paris, a Atenas, a Roma e a Londres. Trabalhariam por dois anos a fio, não sem antes trocarem alianças.
Veio, então, o casório. Tudo foi uma só festa. O jet set de ocasião vendeu a honra na boutique apreciatta, na zona portuária, à custa do cartão de crédito. A igrejinha se enfeitou. Os nubentes, não mais que de um segundo para o outro, se fizeram o par mais feliz do mundo. Artistas de época em suas aquarelas douradas pintaram as mil maravilhas do mundo predestinado tupiniquim.
A vida a dois, por quase três décadas a fio, foi um mar de rosas, no dizer dos românticos. Ela era a queridinha. Ele, o queridinho. O fofo e a fofa. As carícias trocadas na praça causavam inveja às mal amadas do passeio público que queriam para si um marido amoroso daquele. Os homens olhavam de soslaio para a outrora bancária que mantivera-se apetitosa a perder de vista. Um primor de mulher.
Um belo dia, antão, a rotina se abateu por sobre o paraíso construído a quatro cuidadosas mãos. É que eles estavam providenciando o crescimento do império, da fortuna. Tudo seria quatro vezes maior, inclusive o patrimônio já considerável. Conseguiram, enfim.
Um dia, ele a chamou de mana, mas a casa não caiu. Houve alguma compreensão. Pior seria se tivesse pronunciado o nome da sua cicciolina já circundando ao redor.
Ela aquiesceu. Depois de vinte anos de convivência já não se faz sexo com a patroa. O marido passa a fazer incesto. A esposa se torna irmã, ou quase. Acostumam-se à vida a dois sem muito o que fazer à meia luz das alcovas ultrapassadas de um outro tempo.
Os dois, agora empresários do ramo têxtil, tinham tempo apenas suficiente para os negócios. As viagens e a eterna lua de mel ficaram no passado brumoso do cemitério dos corações partidos. Foi quando precisaram de uma secretária que ajudaria a gerir os negócios da presidência, ocupada desde sempre pelo Erik Sebastopoulos, o nosso herói.
Morena, corpo longilíneo e em suaves curvas, selecionada pelo perfil administrativo e pelos conhecimentos de liderança e coaching, fez luz no caminho do alto sexagenário. Apresentara-se, de corpo e alma a messalina loura e nova aos vinte e poucos anos. Era ela a que desde muito antes laborava em horas extras caríssimas em casas de libidinagem abundantes no boulevard. Agora, os gatos já se faziam pardos, ou escurinhos.
A secretária da diretoria chegou e marcou presença pela competência na empresa e no coração do nosso herói grego rico. Mais alguns meses de encontros fortuitos e calientes, a relação se fez paixão e o coroa energizado pelos comprimidos sintéticos mandava muito bem.
Eis que, enfim, a casa caiu, porque era feita de uma argamassa de qualidade duvidosa. A esposa flagrou o casal de pecadores em conluio amoroso na própria cama da casa de veraneio, num distrito adjacente, à beira mar.
Veio, como toda a família esperava, a reação. O pecaminoso foi expulso da mansão de doze quartos da orla de Rio das Ostras. Passou, então, a residir, com a sua godiva, num flat no Baixo Gávea. Viveria, talvez, um novo idílio, agora, nos braços de uma moça loura e linda e cheia de amores e truques a ensinar e a viver.
É necessário, sim, repetir o clichê ao estilo dos melhores folhetins de bordel: trair e coçar é só começar… Que as consequências ditem as normas da vida que há de vir.
É madrugadinha de sábado. O espírito bêbado tosco que me acompanha ao mercado dos peixes sopra ao meu ouvido. Eu o vejo agora em vestes rotas, mas sem rosto. Segundo esta alma maltrapilha do Astrogildo Berimbau, o destino baralha as cartas, e nós jogamos. O louco de pedra, vivido e havido nas doidices da Espanha de Franco, acaba de citar Schopenhauer. Ele tem a razão mais pura delineada por Nietzsche.
Há um desses teóricos mortos que habitam a minha memória. Ele registrou algo mais ou menos parecido com o axioma segundo o qual, por mais que busquemos, apenas nos encontramos a nós próprios. Nascemos e morremos assim, um tanto volúveis.
CLÁUDIO MOTTA PORFIRO, Autor de ‘O inverno dos anjos do sol poente’, romance, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero.