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Dentro de mim se esconde um anjo insano

Os meus mundos eram iluminados, sim. Havia uma tonalidade ocre ou rosácea muito leve, bem tênue, no alvorecer e no crepúsculo de fogo brando, pois fazia um friozinho. Algumas árvores por ali não sei onde existentes faziam o contraponto e tingiam-se de escuro. No decorrer do dia, o céu era de um azul claro infinito, grandioso, feito de luz, muita luz, lindo como a minha pele macia em banhos de sais perfumados e cremes rejuvenescedores. Não mais sei se havia filhos, ou um esposo. Talvez houvesse alguém ali por perto que veio depois a se tornar invisível, inexistente talvez. Não tenho certeza.

Um dia, era quase tardinha, parece-me, as cores dos meus mundos começaram a mudar. O céu tornou-se da cor de chumbo. Eu percebi logo, porque vivia olhando para cima, constantemente, tanto que o meu pescoço doía. Anunciada estava uma tempestade sem precedentes. Uma chuva torrencial ou eterna pairava no ar a milímetros do meu cabelo de diva. Uma pena. Logo eles estariam encharcados e o líquido prestes a cair das nuvens não seria mel. Medo era que fosse água em fervura e o meu belo rosto ficasse desfigurado. Trovões ribombavam e faziam tremer as nuvens mais baixas do meu ser. Doíam as têmporas. Uma dor fina de agulha.

Vieram gotículas mínimas que sequer conseguiram molhar as minhas sobrancelhas, e nem os meus cílios postiços se despregaram. Prometeram-me uma chuva que não vinha nunca, mas o céu já achatava a minha cabeça de anjo cheia de flores. Fechei os olhos e me deitei sobre a grama do quintal do vizinho morto desde séculos. Passaram-se dias, talvez. Certo é que, ao abrir os olhos de esmeralda pálida, o céu cinzento derretia sobre mim. A água não estava quente, nem fria, mas, agora, já me alcançava os joelhos e eu não podia sair do lugar onde havia sido plantada. Impossível. Eu nunca quis ser uma árvore. Nunca cogitei pertencer ao reino vegetal. Como, então, justificaria às outras pessoas tantas raízes, folhas, flores, frutos, galhos, em mim. Algo estava errado. Alguém errara comigo. Eu não falhara em nada, a não ser que o anjo insano que habita dentro de mim achou por bem dizer que eu estava errada. Não acredito. Ele não faria uma coisa dessas comigo, porque sempre foi o meu confidente nas horas vesgas em óculos de grau de fundo de garrafa.

Ainda chovia muito, como não parou de chover por todos esses meus dias de solidão d’alma. Tanta água me fazia lembrar uma viagem que fiz, acompanhada não sei de quem, a uma terra onde a chuva não parava. Ah, lembro. Era Chiueng. Tenho certeza.

Então, eu olhava para muitos, mas muitos não me viam. Depois, eu não via ninguém e todos me apontavam os dedos de unhas sujas me incriminando por haver cometido pecado qualquer. Coisas estranhas estavam a acontecer comigo e o meu anjo abespinhado a partir das tripas finas nada dizia. Logo ele, que sempre queria apontar os melhores caminhos. Desistiu de mim. Abandonou-me aos meus sonhos mirabolantes de cemitério e às minhas quimeras feitas de lixo, cacos de vidro e restos de cadáveres. Perdi de mim até os sonhos. Estou entre lágrimas arroxeadas que parecem sangue pisado. Adeus tudo.

Um dia, finalmente, alguém me fez perceber a loucura que se arraigara em mim. Eu tomara uma injeção enorme de mais de um palmo de comprimento. Coisas várias ficaram muito mais claras. Mais tarde, uma chuvinha depois, um pouco depois de qualquer hora, eu também me convenci de algumas ou muitas falhas em pontos diversos obscuros do véu preto que me envolveu e em que se tornou a minha consciência. Estava, sim, perdida de mim mesmo. Sem jeito, talvez.

Ganhei de presente muito carinho. Era assim esquecidinha, lerdinha das ideias, mas estava feliz. Às vezes fazia perguntas a mim mesmo, mas não obtinha respostas. Estas talvez fossem mentiras.

Eis, pois, que a moça de branco me deu a mão e depois o braço, e saiu comigo a caminhar através daquele imenso gramado de um colégio ou de um clube qualquer localizado não sei onde. Ela passava a mão nos meus cabelos de fios de ouro e me dizia coisas lindas das quais não lembro uma vírgula sequer. Depois, volta e meia, alguém me chamava de Amor. Pensei rapidamente que talvez o meu nome fosse realmente Amor, só que eu não estava lembrada de nada disso.

Dizem que, depois de alguns anos, a minha chuva interior findou por cessar de vez. Veio até um arco-íris para colorir a minha vida. Apareceu uma filha, um genro, um esposo muito bonito e um bebê, o neto.

Hoje, me fizeram escrever esta crônica quase normal. Estudei. Fiz curso superior. Vivo das nesgas que a psicologia me permite dela tirar em uma sala de aula de universidade. Foi o senhor Gide quem me disse que as coisas mais belas são aquelas que a loucura sopra e a razão escreve. Ele está aprovado, com louvor e distinção, mesmo depois de morto, até porque o Sigmund também já não é deste plano dos homens e mulheres. Foram-se todos e ficamos tão poucos dentre todos os compreendedores e investigadores da alma humana. Pois.

Estou regozijada. Trata-se de um afável libelo da psiquiatria dirigido ao amor, quase de graça. Eis aí a obra intitulada Dança, canta, brinca e a saúde mental agradece. Em verdade, li o livro, é claro. Quase o decorei de tanto ler e reler e marcar e rever. Vi bem querer e calor humano por todos os lados. Vi, sim. Elas espalharam afeto, uma vez que enfermeira alguma haverá de sobreviver na profissão sem uma prática e um sentimento humano dos mais nobres como tal. Desta peça escorreu carinho por todos os poros. E ainda está escorrendo. E continuará a escorrer, porque a vida não pode ficar estagnada na mediocridade dos estúpidos que exercem um desiderato como este sem uma dedicação total e exclusiva ao humano – no mais das vezes carente em termos materiais – que sofre e precisa de ajuda sempre e cada vez mais, como todos nós precisamos, em uma instância qualquer da vida, seja aqui ou acolá. Por Deus!

É claro que, em algumas circunstâncias, as lágrimas rolaram, porque eu me senti o ser humano que sou e que busca sofregamente a cura de uma ferida que não é física, e isso é muito pior. A névoa envolvente torna o mundo e a vida surreais a perder de vista. Não se sabe exatamente o que é estar são ou estar enfermo.

Então, eis que alguns anjos não tão insanos houveram por bem dar contornos mais precisos às alegorias e às paisagens ilustrativas de vidas quaisquer. Cá de minha parte, tudo se coloriu, o mundo se enfeitou, a vida se iluminou porque o carinho e a afeição destas tantas vestais do deus Amor fizeram o ressurgimento da minha perfeita consciência.

De tanto navegar e navegar, pois, a história da musa ficou da forma que Deus quis e eu, poeta e fingidor, findei por ser guindado a confidente dos que dizem tudo e falam mais ainda, ou não. Como o Breton, a partir de agora, devo passar a minha vida a provocar as confidências dos loucos. São estas pessoas de uma honestidade tão pura e tão escrupulosa e tão casta que a sua inocência só há de encontrar um igual em mim. Eles me dizem tudo e eu com eles aprendo muito mais.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Este é o prefácio do livro Dança, canta, brinca e a saúde mental agradece, de autoria das professoras doutoras Maria de Lourdes da Rocha Rosa e Ana Carla Peto, da USP Ribeirão Preto.

A Gazeta do Acre: