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O teatro dos cruéis

Os tais atores do macabro cotidiano chegam ao ponto de seguir, fielmente, um adágio popular muito sertanejo brasileiro segundo o qual há humanos peçonhentos que matam, curam e ajudam a chorar. Sujeito esfola a mãe para arregalar os olhos do pai. Há quem entregue um filho ou filha à prostituição, dependendo dos dividendos financeiros que a família poderá auferir. Tudo é um grande circo dos horrores, encenamos uma terrível comédia humana e assistimos ao indescritível teatro dos cruéis.

Encenando um primeiro ato muito ao estilo trágico e cômico e tresloucado, como esta época de grandes perdas e muito mais danos, adentra o tablado uma menininha linda e mimada e loura e sapeca e extremamente comunicativa, sobre saltos Anabela e batons vermelhos nos lábios carnudos e meio definidores de uma índole enjoada. Ela logo se torna o centro das atenções de todos os mais velhos de uma casa de mambembes sociais vindos do norte mineiro em busca de amparo e guarida nas ruelas, favelas e guetos da maravilhosa cidade enorme.

Dez entre dez familiares – avós, avôs, três irmãos mais velhos, pais e uma tia – pensam na menina enquanto a única apta a um dia poder redimir a todos da vida de sacrifícios e subterfúgios a que foram submetidos desde sempre. Ela é de uma beleza estonteante. Escandalosamente linda. Todavia, mal aprendeu os rudimentos da leitura e da escrita. Largou a escola pública assim que conseguiu afirmar-se enquanto contrária a prática tão abominável e cansativa. Isto, ainda aos onze de idade.

Ato seguinte, eis que a mãe, num certo sábado de Carnaval, leva a agora pré-adolescente a um fotógrafo que se encarregará de elaborar um book para que, através deste, a guria seja exposta à venda ou para aluguel a bom preço.

Numa análise rápida e rasteira, urge considerar o fato de vivermos e experimentarmos, hoje, a era do capital, em que tudo e todos têm o seu preço. É claro que moça inculta e bela poderá render muitos dividendos financeiros, a depender do grau de uma inteligência que não foi moldada para os exercícios que levam ao bem pensar as melhores formas de se dar bem na vida. A ela ninguém disse que um passo para trás poderá significar dez saltos para a frente.

Indefesa, fútil e já oportunista, feito a família inteira, a moçoila ainda não descobriu que o cabelo, a boca e as axilas, dentre outras zonas, incluindo as erógenas, têm um cheiro não tão agradável. Talvez ela, como quase todas, só venha a descobrir muitas tantas outras nuances, quando ultrapassar as vinte e cinco voltas, época em que a mulher se faz plena e, acima de tudo, cheirosa, o que aviva a libido dos que têm dólares a mais para fomentar as aventuras além muro, não a preço de banana, mas pelo valor de flores, jantares, joias, carros, iates, dentre outros mimos com os quais os tolerantes brindam as agentes do sexo ao bel prazer.

Então, eis que o book agora é levado a uma agência de modelos adolescentes. Garotas de idade semelhante são concorrentes, se bem que aparentam um certo ar de humildade, ao passo que a nossa heroína carrega um nariz empinado até para entrar no ônibus que a conduz ao seu subúrbio insalubre.

Um sucesso. Este é o primeiro de muitos trabalhos que virão pela vida afora. Quiçá um dia ela será uma estrela da televisão e casará com um executivo do petróleo.

Ela posa sorrindo para o reclame de um creme dental. O publicitário, com cara de Barba Azul, pensando no futuro que por certo a trará de volta à agência e, por conseguinte, conduzi-la-á à alcova libidinosa, declara:

– Linda, mas falta talento.

A mãe, entristecida, percebe que o talento poderá vir a partir dos dezesseis ou dezessete anos, idade em que as ratazanas abocanham – e comem! – jovenzinhas iludidas com a beleza que se esvai a cada dia que nos faz arrancar, cheios de receio, mais uma folhinha do calendário criado pelo homem para lembrar que não se é bonito do início ao fim.

Lívia, a mãe esperançosa, a menos romântica e mais realista da família, se vai ladeira abaixo da Rua do Ouvidor com o seu potinho de diamantes, ou, a bem dizer, a sua garotinha a tiracolo em busca de outra agência. Ela não se conforma e parte para a luta.

Próximo passo, o Largo da Carioca. Um edifício de vinte e oito andares que causa vertigens nas duas. O agente rasga sotaque carioca cheio de esperanças em um dia papar aquele quindim louro de olhos verdes, aquela bonequinha de carne tenra e macia:

– Ela não tem o borogodó. Não vejo nela o papá necessário para um afazer tão exigente… Passa depois!

Agora, o nível do entusiasmo da mãe já está semelhante ao de Maria Antonieta perante a guilhotina. Bate o desespero. Também o outro agente e o outro não veem aptidão nenhuma na garota.

Um mês depois, voltam cansadas, frustradas, desencantadas para o subúrbio sem nenhum encanto. Em casa, o menino mais velho tem uma puta ideia. A meta agora é expor fotos da guria em trajes apelativos nas redes sociais. Ela fotografa bem, certamente, mas ninguém percebeu ou não quis perceber. Já está com quase catorze anos e nada conseguiu.

Entrementes, uma ratazana com experiência internacional nos mercados de carnes louras e lindas está à espreita, à distância. Vêm as promessas e o bote.
– Ela ganhará muito dinheiro, minha senhora. Eu mesmo faço questão de encaminhá-la no mundo do glamour. Podes crer.

Passados meses, a Debyzinha, agora contando já quinze verões cinzentos, cede a um apelo sexual mancomunada com os pais.

Não tarda e ela arranja um namorado de presentes caros e uma certa idade. Vem uma gravidez e o drible do magnata cinquentão que se evade. Era este o plano. Ele a atrairia para a Argentina e a transformaria em prostituta de luxo na Europa. O bacana só não contara com aquela barriguinha proeminente e linda.

Cá ela ficou. Lutou e lutou. Tentou fazer um curso de corte e costura, mas a família, apesar das ocorrências, aquiesceu não ser ela talhada para tal, em vista da beleza ainda proeminente. Da mesma forma, não viram futuro nenhum na escola de informática. Moça tão bonita não poderia ser apenas uma digitadora. Candidatou-se, pois, a uma vaga enquanto recepcionista de um hotel estrelado, onde, inclusive, aprenderia o inglês e, mais uma vez, o oportunismo dos mais velhos não permitiu à moça ganhar a vaga em vista do nível da sua dita formosura. Pobre sempre quer mais e, de preferência, sem empreender esforço, a não ser nas alcovas libidinosas.

Hoje, ela não tem futuro. Não sabe fazer nada porque nada aprendeu. Deby é apenas de uma prostituta noturna, loura e linda da Praça Mauá.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail claudioxapuri@hotmail.com –

A Gazeta do Acre: