Chega ele a pensar que, quando era novembro pleno, o verde da floresta ficava ainda mais escuro, as nuvens se faziam e refaziam em tonalidades de cinza as mais diversas possíveis. Alguns diziam que o céu se tornava carregado. Certo é que a chuva caía a cântaros e, na visão do observador menino mínimo, a passarada deixava o alvoroço da primavera e pouco chilreava, ou nada cantava, como se o mundo inteiro ficasse triste. Hoje, já não é assim, tudo mudou, porque mataram praticamente todas as árvores.
Assim nasceu o menino moreno lerdo. Corria e brincava menos que os demais. Os mais velhos, disciplinadores até o tutano, cuidavam dele com tanto esmero que chegavam às raias do excesso. Possuía pouquíssimos brinquedos, todos de madeira. Todavia, do seu postinho de observação incrustrado na rua das castanholas, tudo passava e tudo era visto e analisado pelos olhos e ouvidos mais atentos que aquela cidadezinha já viu. Veio ao mundo ele então enquanto observador dos demais planetas e das galáxias, ou até mesmo do seu mundinho atroz, rígido e muito significativo.
O armazém era, para o menininho, um lugar encantado. Lá, trabalhava o pai. Em meio aos caixotes, tonéis e montes gigantescos de castanha, poderiam surgir, de repente, o bicho papão ou a alma penada do turco dono daquilo tudo. O mundo era fantástico, fantasioso, como para qualquer humano aos quatro ou seis de idade. Era aquela a fase em que uma velha bota cansada de tanta refrega, num fechar de olhos, colocava a língua de fora por tanto ter-se esforçado nos últimos meses. Depois, ele cochilava e dormia no colo da avó materna cearense mais ranzinza do mundo.
Sentado ao batente da primeira porta, a criança magra finalmente sorriu. Também, chegara o irmão mais novo para fazer a atenção evadir-se para longe do pote de bolas de gude. Depois de uns resmungos mínimos por parte da criança, o pai lhe houvera dado um pirulito pequeno, daqueles cônicos, caramelizados, vendidos nas feiras e mercearias por aí afora. Passou a lambança infantil, enfim.
– Esse tal jogo de peteca torna os meninos vagabundos a partir de bem novinhos. Isso não pode. Nunca. – Era o que diziam os mais velhos mancomunados para emprestar às suas crias menores uma educação de gente de bem. Ah, os nordestinos brasileiros!
A porta da rua não era a serventia da casa, posto que nela havia uma grade forte de maçaranduba e eles ficavam do lado de dentro, é claro, em obediência medrosa aos mais velhos ranzinzas.
Um dia, então, o homenzarrão elegante de cinto preto, camisa de punho branca e calça cinza bemengomada escorregou, perigosamente, numa casca de mamão que o mais novo havia jogado na calçada lisa. O coitado foi ao chão e ficou de bunda para cima até se reerguer. E as gargalhadas foram estrepitosas a partir de um menininho de seis e um de três anos.
Foram repreendidos, veementemente, porque, enquanto projetos de meninos educados, eles jamais poderiam rir da queda de um homem tão amável feito aquele a quem chamavam o prefeito perfeito.
Na cidadezinha toda orgulhosa, havia gente vinda de terras muito distantes, como Síria, Líbano, Portugal e, inclusive, de um tal Ceará, de onde vieram os mais velhos parentes deles.
Nas duas esquinas beira rio, bem próximas à vivenda, havia um português, o Tomaz, e o outro português, o Antonino. Eles tinham umas manias bem diferentes. Um gostava de levar os meninos, pela orelha, para que estes metessem uma mão no recipiente grande, de vidro, de guardar guloseimas à venda, e de lá tirassem quantos bombons pudessem. E não era fácil, uma vez que o homem só passava a mão na cabeça depois de castigar e ainda dizia:
– Ah, moleque!
O outro português, mais drástico, colocava vinte bolinhas de gude num saco de papel e chamava dois meninos do mesmo tamanho para que estes se engalfinhassem numa briga da boa até que um chorasse. Ao final da contenda, o mais duro levada as petecas e o outro ganhava um pirulito para deixar de ser mole.
O menino moreno magricela foi até o vidro dos bombons algumas vezes, e gostou, apesar do ardor nas orelhas, mas jamais se meteu nas lutas, uma vez que o próprio portuga sabia que os mais velhos, responsáveis pela criação, não gostavam daquela coisa bárbara.
Havia, na casa ao lado, uma tia avó muito velhinha, engraçada e asmática. Na vivenda dos cearenses, residia um bocado de gente e, inclusive, a avó brava e uma tia que também sofria de falta de ar. As três eram mediúnicas – sensitivas – e viam espíritos do outro mundo. Pior é que, depois, à noite, elas contavam as histórias para as crianças com a finalidade de lhes impor medo. Só que o tiro saía errado e ninguém nunca andou por aí, à noite, por dentro da mata, com medo de alma. Jamais. Havia muitos caminhos a percorrer e essas coisas não poderiam fazer impedimento.
Todas essas coisas aconteciam e ainda havia o jogo de bola, na esquina, e a brincadeira da manja, na frente de casa, com hora marcada e tudo, porque os tais estudos eram tidos pelos pais e avós como a coisa mais importante do mundo.
O menino mais velho tinha a obrigação de ler, aos sete anos, em voz alta, aí pelas oito na noite, para a avó aborrecida, que também não era alfabetizada, folhetos de cordel com aquela entonação cantada requerida por aquele tipo de verso. Ele lia de carreirinha, um por dia, e juntava outros nordestinos cada qual com o seu livreto na mão. A novela durava uns quarenta ou cinquenta minutos e todos voltavam para as suas casas sonhando com a princesa da pedra fina, ou com o pedro malasartes, ou até mesmo com ocangaceiro lampião, dentre outros muitos.
De ouvidos muito atentos e dando provas de que realmente havia nascido observador do mundo, um dia ele ouviu a mãe dizer para a vizinha bonitona de ancas largas:
– Eu sou contra os reizinhos mimados… Crianças têm que ouvir um não todo dia e umas boas palmadas caem muito bem a qualquer hora do dia ou da noite. Ora mais que essa!
Ao que o pai, rústico, completou:
– Criança muito mimada em casa pode encontrar a mão pesada da polícia, lá fora. E aí, tome-lhe!
O poeta menino ficou estupefato. Eles não estavam brincando de criar crianças para o mundo. Os meninos deles eram para eles mesmos, sim. Tanto foi que, aos dez de idade, o trabalho de vendedor de mingau se tornou praxe diária, isto, para exercitar a passagem do troco e melhor intuir o cálculo matemático, segundo a mãe, uma professora leiga de qualidade acima do comum.
Apesar de não saber ler coisa alguma, a avó dava lições hoje bem vistas por alguns poucos educadores da modernidade. Segundo ela pregava, a escola serve para ensinar a ler, para aprender as quatro operações e outras coisas mais. Quem coloca vergonha na cara é o pai e a mãe.
Ela tinha todas as razões do mundo. O convívio escolar instrui, mas não é o responsável pela educação. Quem educa são os pais, em casa. Certo é que, hoje, poucos dentre os homens de ciência têm observado que, naqueles tempos idos, havia uma grande valorização da educação doméstica e isto faz, certamente, com que as chances de termos cidadãos mais participativos sejam muito maiores.
De casa o menino levou para o mundo uma assertiva muito antiga segundo a qual, se o filho é amável, será bom irmão e, com certeza, não deixará de ser um ótimo marido e excelente ser humano.
*Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo [email protected] –