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UM REI NO ACRE (Primeira parte)

Poucas pessoas devem saber dessa história, mas o Acre já foi visitado por uma importante e controversa personagem histórica, o Rei Leopoldo III da Bélgica. Leopoldo III (03/11/1901-25/09/1983) reinou na Bélgica entre fevereiro de 1934 e 16 de julho de 1951, quando foi obrigado a abdicar.

Sua abdicação se deu em razão de sua atuação durante a Segunda Guerra Mundial, quando ordenou a rendição do país aos alemães depois de apenas 18 dias de iniciado o conflito. Sua atitude contrariou a classe política, que achava que a capitulação deveria ser uma decisão do governo belga e não do rei. A ação unilateral do rei gerou uma grande antipatia contra ele, tanto internamente como entre os países aliados que haviam se unido para derrotar Hitler.

Depois da rendição belga Leopoldo III foi mantido em reclusão e, para não ser acusado de colaborador dos Nazistas, evitou tomar parte em eventos públicos. Mesmo assim, o governo Belga que havia se exilado na Inglaterra não o reconhecia mais como o monarca do país. Durante e após a guerra a imprensa inglesa fez intensa campanha para desmoraliza-lo, referindo-se a ele como o “rei traidor”.

Em novembro de 1940 Leopoldo III se reuniu com Hitler para pedir a liberação dos prisioneiros de guerra belgas. Em setembro de 1941 ele casou-se em segredo em uma cerimônia religiosa com uma plebeia belga nascida na Inglaterra. O fato de a cerimônia religiosa ter antecedido a união civil tornava o casamento sem efeito segundo as leis belgas e por isso o parlamento do país recusou à sua esposa o título de rainha e o direito ao trono.

Os eventos citados acima causaram danos à reputação do rei e foram decisivos para sua posterior abdicação. Pouco antes da liberação da Bélgica pelas tropas aliadas em 1944 o rei e sua família foram deportados pelos Nazistas para a Alemanha e posteriormente para a Áustria, onde permaneceram como prisioneiros até o encerramento do conflito em 1945. Na ausência do rei, o parlamento belga resolveu designar seu irmão, Príncipe Charles, como regente.

Por causa da controvérsia sobre sua conduta durante a Guerra, Leopoldo III e sua família ficaram impossibilitados de retornar à Bélgica para reclamar o trono. Enquanto a situação se resolvia, a família real exilou-se na Suíça a partir de 1945.

O retorno de Leopoldo III à Bélgica só aconteceu em 1950, depois que uma maioria de 57% de votantes de um referendo popular concordou que ele reassumisse sua função monárquica. Apesar disso, seu retorno ao país em julho de 1950 desencadeou conflitos regionais que ameaçaram a unidade do país. Diante da iminência da eclosão de uma guerra civil, Leopoldo III foi forçado a abdicar do trono em favor de seu filho Balduíno menos de um mês após o seu retorno. Em razão da pouca idade e por ser solteiro, Leopoldo III tutelou informalmente seu filho até 1960, quando ele casou.

Depois que deixou as funções reais, Leopoldo III se dedicou com afinco à antropologia e viajou para diversos lugares do planeta fazendo pesquisas e tomando fotografias, um hobby que tinha adquirido na juventude. Ele esteve no Brasil em cinco ocasiões. A primeira vez em outubro de 1920 quando tinha apenas 19 anos de idade, acompanhando o pai, rei Alberto I durante visita oficial ao país. Em 1962 ele esteve no país duas vezes. Em 1964 ele voltou para uma expedição ao Xingu na companhia dos irmãos Villas Boas, tendo convivido com indígenas por quase dois meses. A última visita, em 1967, incluiu a Amazônia, ocasião em permaneceu no Acre durante seis dias.

Antes de chegar ao Acre, Leopoldo III visitou Rondônia e cumpriu de trem pela estrada de ferro Madeira-Mamoré o trecho entre Porto Velho e Guajará Mirim. Segundo seu relato ele saiu de Porto Velho no sábado, 25 de novembro de 1967, às 07h15minh e chegou a Guajará Mirim às 21h40minh. Em seu diário ele descreve, entre outros aspectos da viagem, a passagem ao largo da cachoeira de Santo Antônio, nas imediações de Porto Velho, onde hoje está erguida a usina hidrelétrica de Santo Antônio e fala da ponte metálica que atravessa o rio Jaci Paraná, na altura do km 90 da ferrovia, hoje abandonada ao lado da rodovia BR-364.

O relato de Leopoldo III indica que para percorrer os 366 km da ferrovia que ligava Porto Velho a Guajará Mirim foram necessárias cerca de 14 horas e 30 minutos, sugerindo que a velocidade média do trem era de pouco mais de 25 km/h. Depois de permanecer o dia de domingo (26 de novembro de 1967) em Guajará Mirim, Leopoldo III partiu para a histórica visita ao Acre na tarde de 27 de novembro.

O texto que apresentamos a seguir foi retirado de livro “Léopold III Carnets de Voyages 1919-1983” (Editions Racine, 2004, Bruxelles), traduzido do francês para o português pelo primeiro autor do presente artigo:

Segunda-feira, 27 de novembro de 1967:
Estamos na temporada de chuvas. O prefeito de Guajará-Mirim nos acompanhou até o terminal do aeroporto e me presenteou com um pequeno jabuti. Nossa decolagem foi às 16h 52.
Atravessamos o rio Mamoré e voamos sobre a Bolívia. O piloto me convidou para ir à cabine de comando. Eu assumi o comando ao seu pedido e voamos sobre a grande floresta amazônica durante toda a viagem. Passamos sobre os rios Rio Beni e Abunã, que marca a fronteira entre a Bolívia e o Acre. As florestas nesse trecho ainda estavam intactas.

Pousamos em Rio Branco às 18h 03.

Fomos levados de carro até a sede do Governo, porque não havia vagas nos hotéis de Rio Branco. Bebida e jantar com o vice-governador Omar Sabino de Paula, o prefeito Adauto Brito da Frota, o piloto e três homens da nossa tripulação, incluindo o aeromoço que desempenha esta profissão para pagar seus estudos de direito. A atmosfera do encontro foi particularmente agradável.

Artigo continua…

Para saber mais:
– Léopold III Carnets de Voyages 1919-1983. Editions Racine, 2004, Bruxelles.
– Rei Leopoldo III – Diários de Viagem 1962-1967. Fundação Álvares Penteado, 2010, São Paulo.

Alceu Ranzi e Evandro Ferreira

A Gazeta do Acre: