X

O voo do cisne dourado e branco

Foi por aqueles dias em que o avô, enfim, havia retornado ao pó. Ele sequer olhara para as botas. Também não batera a caçoleta. Era um homem refinado vestido defunto no seu velho dólmã azul marinho de botões prateados e galardões dos tempos do Império. Mesmo agarrado aos pais, na hora da partida, eis que o pobre menino rico se sentiu órfão. Corações cortados em mil pedaços. Dores lancinantes em feridas inexistentes. Uma noite sem lua. Um céu sem sol. Ele era mesmo apegado ao avô carinhoso e cheio de amor para dar, ou para negociar.

Entre os cearenses lá de casa, alguém um dia disse que o destino é uma prostituta insegura. E o é, verdadeiramente. Advogado de alta linhagem, era esperto como um gambá nos júris e cortes judiciais, e lerdo como uma lesma do portão de casa para dentro. Eis, pois, que, de repente, sem estertores, o velho fez a passagem vítima de um colapso cardíaco fulminante. Ele se metera em camisas de onze varas, como diziam os antigos. Andara chafurdando, sem maiores cuidados, na lama pútrida das culpas diversas, inclusive no social e no doméstico, e não suportou a pressão que vinha de fora e nem a que vinha de dentro. Esticaram-se as tiras do suspensório. Quebrou dentro e escondeu a ponta. Pipocou no meio da sala de estar onde bebia um xerez branco bem à moda dos ingleses. Menos mal que uma herança polpuda houvera ficado, inclusive, uma fatia a ser gasta enquanto benesse cultural. Assim, ele pensava desculpar-se de alguns tantos pequenos ou grandes golpes e rasteiras que dera em muitos pela vida afora. O nosso herói, vindo há tempos de Portugal, era uma águia nos negócios limpos e uma hiena nas jogadas sujas.

Mesmo diante do defunto ainda fresquinho e cheiroso a almíscar, nos primeiros acordes da harpa que dava o tom do funeral cantado e chorado por carpideiras selecionadas, a avó portuguesa e nordestina do Brasil, que aqui chegara ainda menina pelas mãos dos pais, também tinha os bofes no pé da goela e uma pinta de sangue no olho esquerdo, fez discurso sucinto e claro:

– Era um homem muito bom na vida privada, um pai de família e tanto, apesar das puladas de cerca frequentes, mas na vida pública não era flor que se cheirasse. Metido a pinga fogo, deu nó em pingo d’água enquanto viveu. Por isso amealhou fortuna nos paraísos fiscais de além mar. Talvez o céu não lhe seja o lugar merecido. Talvez as labaredas não conseguirão lhe devorar as tripas apodrecidas. Por isto, a sorte está lançada. Entreguemos tudo nas mãos do Criador, menos o dinheiro. Que Deus o tenha aonde bem entender!

Em uma carta bem escrita por competente notário, ficaram lavradas as observações relativas às polpudas economias e algumas boas intenções do velho patriarca luso metido a brasileiro. Um neto, uma filha e a esposa dividiram quase tudo, porque ele deixou alguns milhares de vinténs para que, enfim, os intelectuais componentes da academia das letras tupiniquins pudessem levar a bom termo objetivos traçados há quase século inteiro.

Homem afortunado e de vasta leitura, amante mesmo dos clássicos mundiais e das letras bem acabadas, apesar de nunca haver escrito nada que tivesse vínculos com a literatura, ou nada que fosse legado de alguma forma às artes, deixou, enquanto parte do seu espólio, uma carta longa em que dava detalhes acerca do seu investimento cultural que não era nada mais nada menos que um pedido gordo de desculpas à sociedade pelo vasto repertório de trambiques e falcatruas, que deixara como modelo e exemplo para os pústulas do futuro, que ficaram de vir – e vieram aos borbotões! – para achincalhar e desmoralizar, ainda mais, a prática política e social jamais cuidadosa e sempre levada a efeito pelos homens e mulheres mais sacanas desta Pátria amada Brasil. Um Deus nos acuda, minha senhora!
***

Então, numa síntese da longa e minuciosa missiva, deixou o velho estabelecido que um prêmio anual de literatura, em dinheiro, deveria ser entregue aos acreanos que realmente produzem crônicas, contos, romances, poesias. Mantido em aplicação no mercado financeiro, a honraria jamais deixaria de ter fundos, se bem administrada por quem de notório saber. (1)

Segundo as palavras do patriarca, formas várias poderiam ser usadas para o incremento da produção literárias em terras do Acre:

– É oportuno recorrer às agências de fomento à cultura, como as nacionais, estaduais ou municipais, ou mesmo às editoras, ou embaixadas estrangeiras, através de projetos cuidadosamente elaborados porquem de competência, com o intuito de operar financiamentos ao produto literário emanado da Academia Acreana de Letras. (2)

Adiante, o nosso midas segue dando pistas para o futuro.

Ainda através de projetos bem justificados, poderão ser constituídos, nas escolas de ensino fundamental ou médio, os círculos de leitura, cujo grande objetivo será a formação de novos leitores e futuros adquirentes das obras levadas ao público pelos próceres e imortais da nossa academia. É claro que tal medida, também, incentivará os mais novos nos caminhos da leitura, sempre levando em consideração a assertiva segundo a qual quem bem lê, bem escreve, bem fala, bem ouve, bem vê.

Em termos metodológicos, em dias de sábado, durante sessenta ou noventa minutos, um dos membros da Academia iria à escola para coordenar as salas de leitura. Postando-se no centro de um círculo formado por alunos, este coordenador iniciaria a leitura das primeiras três páginas de um livro projetado através de equipamento multimídia. Daí em diante, cada aluno, se assim o quisesse, leria uma página ou duas e assim sucessivamente, até que todos lessem. Deste modo, muito provavelmente, um romance completo poderia ser lido em apenas um encontro. (3)

É oportuno considerar ainda que a participação da Academia nos eventos literários organizados pelos alunos e professores do Curso de Letras da Universidade Federal do Acre não é tão significativa.

A inserção dos nossos imortais tornar-se-ia de uma importância fundamental para a agremiação. Em um dos dias da Semana de Literatura, seriam organizadas récitas onde a produção dos nossos literatos seria levada ao conhecimento do público alvo mais importante, os acadêmicos da Ufac.

Em uma ocasião assim, os nossos futuros críticos literários fariam adendos às obras e tudo viria para melhorar o fruto do trabalho dos próceres da nossa Academia. (4)

Por outro lado, quando da realização desses eventos, a AAL poderia se encarregar de organizar uma feira onde seria conhecida – ou até mesmo negociada – a produção literária das pessoas que escrevem algo de significativo em terras acreanas. (5)

O nosso benfeitor quase anônimo se sentiu na obrigação de fazer acordarem aqueles poucos que ainda não estão dormindo em berço tosco.

O velho não estava com a saúde mental nos trinques. Ele tinha rompantes de insanidade em meio a alguns minutos bastante racionais. Daí, para arrematar, ele cochichou, ao pé do meu ouvido, que a fogueira das vaidades do Tom Wolfe poderia chamuscar alguns e pedras sobre pedras poderiam virar apenas entulho.
Nunca se sabe.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mailclaudioxapuri@hotmail.com –

A Gazeta do Acre: