Chegara já o estágio em que o divã quase tinha o formato e as curvas dela, ou vice-versa, tanto era o tempo durante o qual as análises ocorriam. Folgadíssima, cheia de malemolência e serpenteando feito cobra na areia quente, sentia-se tão à vontade que chegava, fazia os rapapés e mesuras de praxe, colocava os cabelos em coque, tirava os sapatos reluzentes e se acostava de pernas cruzadas sem maiores recatos.
Morena clarinha, linda, pele de veludo, tinha cabelos pretos lisos que deslizavam até a bunda arrebitada. Um colosso o tal par de rabo, no dizer dos especialistas. Qualquer observador menos cuidadoso afirmaria ter ela um corpo escultural. Os olhos eram de um azul tão profundo e penetrante que muito lembravam um céu de Ticiano, o pintor, ou as safiras exóticas que representam a fidelidade.
No início, não era assim, claro. Só que a aclimatação dela ao ambiente e à pessoa do analista fora se solidificando ao longo de nove anos quase ininterruptos. Já fazia parte da paisagem, ou dos ares da sala art decor. A essas alturas dos acontecimentos, ela já não esperava por pergunta alguma que fosse. Saía discorrendo a torto e a direito acerca da sua alma cheia de conceitos estereotipados, vivacidade e eloquência fartas. Ali mesmo ela plantava e fazia germinar os seus segredos caóticos repletos de alma.
Desta feita, então, se fez anunciar pela recepcionista chegada naquele dia, entrou de maneira espalhafatosa, estrepitosa, rebolando como se estivesse na Sapucaí, deu boa tarde ao analista e já desceu a lenha, por assim dizer:
– Venho de uns relacionamentos meio pueris, ou infantis mesmo. Estou vindo de outros deles, bem maduros, educados, comedidos que foram chegando e atingindo o meu ser desde a adolescência. Coroas sempre estão na moda, principalmente os que têm iate e Ferrari. Mas a dúvida persiste e me traz um travor na boca e na alma. Os doidinhos são folgados e os cavalheiros são boa companhia, na média, mas trazem consigo outras exigências. Certo é que gosto de gente que insiste em mim e que, apesar dos meus dias ruins, de eu ser complicada de lidar, não desiste e tenta me entender e falar comigo.
Ele pensou com os seus botões de madrepérola. Veio se meter nisso porque quis. Fazer análise em mulheres mimadas e cheias de vontade de se tornarem musas de si próprias é um caso sério. Ora, pois. Quero crer que o destino é como uma prostituta insegura que não sabe onde ou com quem deve ir. Uma profissão rentável – nas engenharias, por exemplo – sem ter que tolerar os achaques de patricinhas empoeiradas, seria bem melhor. Mas não foi o caso. Assim quis Deus. Prossigamos, então.
Mordiscando com os lábios a armação dos óculos, em segundos, o analista refletiu no que houvera escutado de um paciente chifrado que ali estivera no dia anterior:
– Nunca deixe insegura uma mulher dos dias atuais. Essas modernosas são fogo na chibata, além de não terem papas na língua afiada. Há um tempo que já vai longe, elas choravam, se maldiziam, se descabelavam. Hoje, as dondocas copiam a maioria dos homens e, simplesmente, partem para outro, ou outra, sem dó nem piedade. Assim do tipo estrepe-se todinho, se quiser.
Voltando à adorável cliente boazuda de fazer parar o trem, o analista conjecturou que, se as mulheres estão tão donas de si, ou emprenhem logo, ou saiam de cima, ou de baixo mesmo, tanto faz. Que adotem as suas opções sem tantos titubeios. E sem muito alarde. Escolher entre um amor juvenil pago e um amor maduro que se auto financia fica a cargo do livre arbítrio de quem quer que seja.
– Os cegamente apaixonados que me perdoem, mas o amor próprio é fundamental. O mundo e as relações precisam que as criaturas gostem de si mesmas antes de mais nada. Entre um e outro amores, amem-se, preferencialmente. Você deverá ser sempre bem mais importante para você mesma que para os demais.
Tal comentário, feito pelo terapeuta, despertou a bela de uma espécie de catarse, um transe que a deixara paralisada por alguns minutos mirando a copa de uma amendoeira bem rente à janela do prédio.
– Ontem mesmo, em conversa com o escolhido do trimestre, moço de vinte e poucas voltas, fui taxativa e exigi que ele não me julgue pelo que vê, pelo que acha e muito menos pelo que dizem ao meu respeito. Talvez eu seja quem ele espera, ou muito diferente do que possa imaginar. Eu sou mais eu e muito mais que isso. E foda-se!
Analítico, como a profissão exige, e querendo vasculhar ainda mais a alma da beldade esguia, ele marchou célere para o desfecho do raciocínio:
– O mocinho dos seus volteios tem algum afazer digno, além de andar em baladas todas as noites sem gastar o que é dele? Trabalha? Estuda? Faz o quê da vida?
E a musa encantadora continuou a sua cantilena desenfreada:
– Diz ele que foi filho de papai, mas tudo ruiu, depois que o descobriram enquanto mandrião contumaz e enganador da boa-fé da família nos seus olhos verdes de turmalina.
– Então, ele mente para os pais e engana a você também. É isso?
– Eu sou mulher e também sou meio porra louca, como a maioria das do gênero. Vejo as mancadas deles, sento e dou uma boa risada, sim. Mas, em seguida, quando eu me levanto para agir, até o diabo senta para aplaudir. Você gostou da rima. Bate aqui!
E ela deu sequência ao espalhafate. Ainda teria dez minutos que, de praxe, seriam todos seus:
– Meu amor! Como dizia a Lady Godiva, o coração nunca mente, mas, em compensação, é burro pra caramba. Eu me apaixono fácil pelos machinhos caros e, nem se passam três meses, já vejo no coroa enxuto o grande amor da minha vida.
– E a Lady Godiva disse isso mesmo?
– Se não disse, deveria ter dito.
Algumas anotações e eis que surge mais um questionamento acerca daquela alminha doida:
– E, enfim, o relacionamento sofreu uma ruptura breve, ou há um cinquentão charmoso à vista?
– Vou-me aquietar a partir de agora. Sou mulher e, por isto, serei muito mais prática ainda. Talvez eu o veja hoje mesmo nos seus cabelos elegantemente prateados de tirar o fôlego. É a cara do Richard Gere quando faz aquela pose de macho. Todavia, ao pestinha, eu ainda vou pedir desculpas por não ser eu a pessoa mais importante da sua vida, mas espero que, quando ele ouvir falarem o meu nome, sorria e lembre que um dia viu essa maluca aqui descer do salto, sim, senhor.
Ponderando, uma vez mais, acerca do seu afazer de analista bem-sucedido, e sobre as maquinações eporralouquices das madames endinheiradas, ele anotou que não se deve ter medo de dizer não. Não se pode mentir apenas para agradar. Nada de tirar por menos o que nos incomoda. Não sejamos falsos com o nosso próprio eu, porque relacionamentos são construídos com verdades. Se for para mentir e viver de falsidade, é melhor seguir o caminho sem acompanhantes.
O analista havia tirado lições importantes. Como a Mavis Cheek, ele aprendeu que os homens, esses, sim, é que são muito mais românticos e as mulheres muito mais pragmáticas, uma vez que foram elas que tiveram que aprender a seduzir para sobreviver mais tempo que eles.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou através dohttps://www.facebook.com/claudiomotta.com.br/