Dá pra fazer um filme mental em time lapse nessa hora. Saindo do Acre aos 12 anos para terminar o ensino fundamental em escola pública no Rio de Janeiro. Com muito esforço, e pitada de sorte, uma bolsa integral, por desempenho, para poder estar em bom ensino médio privado. Breve flerte com a Física, uma obsessão. Faculdade de Medicina da UFRJ. Seis anos de Ilha do Fundão. Três ônibus pra ir, dois para voltar. Hospital Universitário, Maternidade Escola, Instituto de Psiquiatria… Grande escola! Ao fim, único médico voluntário para o Serviço Militar na Amazônia. Piada pronta no Comando Militar do Sudeste – “lá vem o voluntário”. Um ano inesquecível no 4o Batalhão de Infantaria de Selva, Sentinela do Extremo Ocidental. Cruzeiro do Sul, Marechal Thaumaturgo, Serra do Moa… Voltar ao Acre por dentro dele. Em seguida, Especialização, Mestrado e Doutorado na querida UnB. Brasília, flor do cerrado. De novo ao Acre, concursos públicos: SESACRE e UFAC. Assistência, ensino, pesquisa e gestão. Reencontro com Fernanda (só podia ser com ela). Lua de mel e casamento. Helena e Vicente. Ainda crianças. Não por muito tempo…
Faltava a vivência no exterior. Aprimorar o segundo idioma, consolidar a formação em Hepatologia – a especialidade que me escolheu, viver sob nova cultura e oportunizar isso aos filhos. A hora era essa. Fernanda saiu na frente. Um curso no Brasil com um dos maiores nomes mundiais da cirurgia colorretal infantil, Dr. Alberto Peña, um mexicano radicado nos EUA, casado com uma brasileira, e já recebeu o convite para conhecer seu serviço no Children’s Hospital de Denver, Colorado, eleito ano passado um dos 3 melhores hospitais infantis dos EUA.
No University of Colorado Hospital (UCH) fica o Serviço de Gastro-Hepatologia chefiado pelo brilhante cubano-americano Dr. Hugo Rosen. É pra lá que tenho que ir. Como? Mandar uma carta, “na cara e na coragem”, me sugeriu a Decana da Hepatologia Brasileira, Profa. Edna Strauss. Anexei currículo, cartas de recomendação e expliquei o que queria: aprender com o funcionamento de um serviço médico-acadêmico de referência mundial e poder trazer um pouco disso para uma região remota da Amazônia, onde as doenças hepáticas têm elevada ocorrência e impacto social. Me aceitou! Três meses como professor convidado. Meu período sabático. Coisa fina. Top. Vou zerar minha poupança, mas vai valer a pena!
Coincidentemente uma delegação do Estado do Acre, chefiada pelo Governador, Tião Viana, estava em visita oficial à Universidade do Colorado em Janeiro. Soube da palestra pública que Tião faria na Faculdade de Direito. Obviamente eu não podia perder. Dois grupos de acreanos, sem combinar, visitando a trabalho, no mesmo período, um longínquo e desértico estado do meio-oeste Norte-Americano. Deve ter algo de interessante nesse Colorado, ou nesse Acre.
Assisti Tião falando para um seleto e difícil público de professores, pesquisadores e alunos de pós-graduação das áreas de Direito e Ciências Sociais, interessados no tema do desenvolvimento sustentável. Colorado é hoje uma nova Califórnia, um novo vale do silício. Epicentro empreendedor, atraindo e difundindo inovação com desenvoltura e liderança.
Nos bastidores, os comentários dos anfitriões de cerimonial eram de certa estranheza: um governador de Estado andando de uber? se hospedando numa casa comum? Onde está a entourage? Unusual. Do tradutor designado para a visita, um brasileiro de Curitiba, professor de artes cênicas na Universidade do Colorado, a observação de quem esteve ao lado de todos os diálogos: tem tudo na cabeça, todos os dados! Raramente precisa dos assessores para lhe socorrer com informações.
Na plateia, as astutas questões levantadas pareciam inevitavelmente convergir para a “million-dollar-question”: como é possível conciliar desenvolvimento e preservação? Como é possível arbitrar o conflito inerente? Ora, direis, sublinhando “o lado bom da política”. A política que educa. A arte do possível. A atividade humana mais capaz de transformar direta e decisivamente a vida de grandes coletivos. A política para o que ela foi feita.
De rápido me lembrei de Lincoln liderando, como presidente, a árdua batalha pelo fim da escravidão nos EUA, retratado em majestoso filme de Spielberg. Grandes interesses econômicos estavam em jogo naquele momento, mas, como ensinou o poeta, “there is nothing more powerful than an idea whose time has come”. O fim da escravidão era a necessidade de um tempo. E o que tem que ser feito é o melhor a ser feito.
Tirar madeira “de forma manejável” da floresta custa mais e rende menos, claro. Alguém vai perder com isso… a solução está no business, coisa que os americanos entendem melhor do que ninguém: tira-se menos madeira por unidade de trabalho, mas essa madeira, com selo e certificação, é significativamente mais valiosa que aquela retirada indiscriminadamente. O valor agregado que a sustentabilidade empresta ao produto paga, com margem, seu maior custo operacional. É um bom negócio. Simples assim. E bons negócios proliferam nessa seara: açai, cupuaçu, castanha, sementes, óleos, peixes… basta uma rápida pesquisa no site amazon.com (a maior empresa de comércio eletrônico do mundo, nada a ver com a região amazônica, apenas o nome pego emprestado por seu visionário fundador, Jeff Bezos), para ver a que preço eles entregam o grama de um extrato de puro cupuaçu em pó (aqui considerada uma superfruit tropical) em qualquer lugar dos EUA em 3 dias. Dr. Hugo Rosen não dispensa uma colher do extrato em seu iogurte matinal.
O mundo está interessado na preservação ambiental. Essa é uma idéia poderosíssima, cujo tempo chegou. Existe um mundo disposto a pagar para a floresta ficar em pé – “venderemos vento” já disse um astuto engenheiro, sobre os chamados “rios voadores”, as volumosas massas de vapor d’água que sobrevoam a Amazônia, e fazem a curva justamente no Acre, tangenciando os Andes. E existe um mundo de potencialidades econômicas dentro da maior biodiversidade global que habita nossa rain forest. O Acre se constitui em um potencial modelo nessa área. Um case no qual muitos estão interessados. Insistir em uma política ambiental consistente pode vir a ser de fato um grande negócio para esse pequeno estado Amazônico. Muita gente, não só no Acre, mas também no Colorado, acredita nisso.
To be continued…
*Thor Dantas. Médico Infectologista e Hepatologista. Prof. Adjunto Universidade Federal do Acre