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O inquietante enigma das almas retorcidas

Os últimos invernos haviam sido muito rigorosos. As entranhas se lhe enregelaram, em vista das temperaturas mínimas. As fendas da alma de pedra preencheram-se de gelo e, agora, de líquen. Meditativo estava desde séculos, posto que, no amor, o tempo é contado de forma inimaginável aos sentidos de quem não tem a alma retorcida pelas desilusões. Não havia nenhuma pressa no andar da sua carruagem triste. O caminhar indolente fazia-o olhar para atrás, sempre, para o antes de anteontem, e para o chão de pedras sujas de maré. Só.

Em verdade vos afianço que umas das sequelas mais terríveis para as vítimas dessa moléstia chamada adultério é que o humano acometido da cuja passa a assemelhar-se a um barco sem vela e sem leme, no meio do mar. Daí você olha e vê o cliente com cara de desgovernado, aparvalhado, cão-sem-dono, à toa, à deriva, boiando feito excremento.

Estava ele meditativo, apesar de não pensar em nada. De vez em quando, lhe vinha à mente vaga algo dito por um amigo, em hora qualquer, nos botecos da vida, talvez. É papel da experiência ensinar-nos a desconfiar de tudo, e muito especialmente até de nós próprios. O jogo é duro e bem jogado. Prepara-te, ó palerma!
Num desses dias em que o cliente deveria mesmo era ficar em casa entocado, sem meter sequer as fuças fora do casulo, apareceu-lhe ninfeta no frescor dos vinte e poucos anos. Ele já ia para bem além das quarenta voltas e lhe impressionaram aquelas ancas balouçantes, a cintura fina e o rosto de anja mimada e impudica, ou boa de cama.

A bela tinha o corpo tão ágil e miúdo quanto era a mente pragmática. Coisa de mulher. As unhas do pé estavam pintadas em um tom rosa discreto, e as mechas castanhas, brilhantes como grãos de cafépremium, caíam em ondas soltas em volta dos ombros nus e iam lamber o vaivém dos quadris mais belos de que se tem notícia desde Cleópatra. Seis longas fileiras de pequenas pérolas pendiam graciosamente do seu delicado pescoço e, em volta do antebraço, próximo ao cotovelo, três braceletes de ouro, que ela comprara na feirinha, compunham o visual. Photo shop puro. Propaganda enganosa. Abaixo de bijuteria. Tudo miçanga fedida.
Homem maduro e interessante, principalmente, levando-se em conta a Ferrari prateada e o triplex na Barra, findou por marcar encontro para ontem. Foram, pois, jantar em restaurante de nível lá em cima. Depois, sentados a um banco de praça, conversaram à beira do canal que desemboca no oceano sujo, como não poderia deixar de ser. Coisa de brasileiro, aquele ser que faz questão de atirar os seus dejetos ao mar como para fazer gozação com a cara dos outros e com a de si próprio.

Aconteceu, mesmo ali, uma paixão em fogaréu, labaredas flamejantes, mais oportunistas que avassaladoras. À noite foi curtinha para tanto amor. Eram almas gêmeas, mas o anjo dela era desqualificado e mandrião.

Nas barras dos tribunais, por assim dizer, já namorando a própria advogada com cara de Sharon Stone, ela usou de alguns argumentos débeis com a intenção de faturar alto em cima do amor bandido.

Algumas coisas muito básicas ensaiaram as rupturas iniciais mínimas que, somadas e multiplicadas, foram, paulatinamente, ensejando o desmoronamento do morro e do barraco que não era nada mais que um triplex de cobertura em um dos endereços mais caros do mundo. Coisas de relações criadas a partir do oportunismo. Feito mingau, o amor desonerou.

Ele ficara rico trabalhando com afinco no ramo das exportações para a zona do euro e tigres asiáticos. Sabia tudo sobre quantos esforços foram empreendidos para que a fortuna fosse amealhada em paraísos fiscais. Era escolarizado nas manhas do dinheiro. Já ela, como as grandes trepadeiras cujos galhos se enroscam até nas pernas do freguês, pensava o contrário e detestava quando ele dizia que as compras são uma obrigação, e não uma atividade. Pior é que Valentino, Armani, Dior e Gaultier custam os olhos da cara de qualquer rico metido a pão duro. Ademais, pessoas que não sabem de onde vêm tantos recursos, que compram desvairadamente e por compulsão, odeiam ser refreadas nos seus ímpetos.

Certa vez, o aqui tratado cliente se fez de cozinheiro, mas o caldo entornou e tudo saiu muito pior que o que não foi previsto em termos negativos, ao que ele ponderou:

– Pense que eu tentei e não consegui fazer o melhor e, se eu estragar tudo mais uma vez, veja se você consegue dizer que eu tente de novo e daí eu acertarei. Entenda a minha boa vontade em ser útil de alguma forma.

– Vejo é que você reclama da minha doença do consumismo compulsivo e está aí estragando dinheiro quando estraga a comida.

Uma mania bem ortodoxa das mulheres, que nenhum homem gosta, é essa de querer manter diálogo, em voz alta, com o chuveiro ligado, através da porta fechada, quando ele está no banho. É triste. E foi daí que, com a toalha enxugando as orelhas e, educadamente, ele falou uma verdade deplorável do ponto de vista da esposa xucra:

– Eu te amo menos a cada sílaba que você pronuncia ao entabular esse tipo de conversa de doido. Do que era que você estava falando mesmo? Eu nada entendi.
Muito do pouco que existia foi pelo ralo no dia em que o casal, forçosamente bacana, recebeu, para um final de semana de verão caríssimo, a visita de uma irmã (dela) e uma amiga destas que param o trânsito da marginal pinheiros em horário de pico.

Vieram o Domingo noturno morno e aquele filminho água com açúcar do Netflix em que a temática girava em torno dos ciúmes compulsivos muito próprios de pessoas de parcos arrimos culturais e nenhuma segurança.

Ele foi acusado de troca de olhares lascivos com as duas e a confusão medonha teve clímax e término quando ele afirmou em palavras calmas e compassadas:
– Caríssima, amor da minha vida, anota aí: eu tenho tesão em você, simples assim, e não na sua irmã ou na sua amiga ou naquela outra sua colega também de poucos esforços. Clareou mesmo ou quer que eu desenhe?

Ela ficou puta da vida com o verbo desenhar colocado da forma como foi, mas conseguiu se conter, apesar da rudeza que compunha a sua aura medíocre.
Um dia, então, quando do questionamento acerca das amizades masculinas com quem ele se acompanhava na sauna do condomínio e com quem dividia um futebolzinho na praia em frente, afora uns chopes ali mesmo na Downtown, ele foi taxativo:

– Aqueles meus amigos são homens, indiscutivelmente. São pessoas da minha alta estima há seis anos, desde que resido aqui. Não só eles não são negociáveis, como eles são seu melhor sinal de que eu não sou um cara dividido.

Os pensamentos voavam tal qual aquela brisa de fim de tarde. Ele agora via claramente, dentre outros fatores, essa mania de ela não querer se livrar da maquiagem, quando, na verdade, mulheres ao natural são muito mais sexys. É o mesmo que essa mania de querer mexer nas sobrancelhas do marido. É simples. Deixe-as em paz.

Lembrou ele, então, de umas das últimas frases marcantes para ela antes da partida:

– Não fique tentando dissimular coisa alguma. Apareça na minha alma. Ative a minha libido, sempre. Você pode fazer sexo comigo a qualquer hora que quiser. É sério!

Ao término da travessia da avenida, de volta para casa, a alma já não estava retorcida. A catarse houvera feito um bem danado a ele, principalmente, quando vislumbrou loura estonteante, belíssima, sozinha, na entrada do prédio.

O novo amor surgira do nada. Ele comprara um pequeno iate naquele dia pela manhã.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelohttps://www.facebook.com/claudiomotta.com.br/ (mensagens).

A Gazeta do Acre: