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Um amor de crianças, às vezes…

Infância feliz. Havia uma avó matriarca ranzinza, mas com o coração eternamente em festejo, apesar da energia usada com um cinto na mão, ou com uma corda mesmo, sempre que necessário, ou todos os dias, para conter os ímpetos da rapaziada. A saúde plena de todas as crianças as fazia alegres, saltitantes, desassossegadas e arteiras até, à exceção de um dos meninos. Este, talvez do signo da coruja, falava o necessário, mas prestava atenção aos detalhes mínimos da forma de agir das pessoas e arregalava os olhos admirado com as nuances dos acontecimentos domésticos ou paroquianos. Seguia na calma. Só na maresia.

O menino, muito bem instalado no seu posto de observação, ou no seu mundinho investigativo, atento, analítico, apesar da idade mínima, estudava, com o irmão mais velho, à luz do farol à querosene, entre quatro e sete da manhã. Daí em diante, uma grande algazarra se instalava em casa, posto que os menores haviam acordado, o que o fazia ir para a biblioteca do colégio das freiras, onde leu mais de cem livros em oito anos. Havia a prática de algum esporte e, acima de tudo, o descortinar de uma realidade vívida e pulsante, de toda uma cidade, bem ali na frente do seu observatório, de onde percebia e anotava tudo, mentalmente e com cuidado meticuloso.

As crianças das proximidades eram muito interessantes. O menino anotador perscrutava aquelas brincadeiras e manias inocentes dos pequenos burguesinhos bacanas, mas não tão mimados, com raras exceções. As suas histórias giravam em torno do lírico, do épico, do dramático e do trágico. Deus meu!
A mãe exercia as atividades domésticas, mas era, ainda, costureira de bom nível, ou modista, como se dizia na época.

Um dia, às onze de uma manhã de verão, a modista ultimava os detalhes de um vestido encomendado por dama bela senhorinha. Para a sua surpresa, apesar do planejamento minucioso, deu pela falta de um dos complementos, talvez um fitilho, talvez uma renda, ou um viés, ou uma cianinha. Como a cliente morava ali bem próximo, ela resolveu ir à casa da mesma, pois não seria justo esperar que aquela viesse buscar o vestido não concluído. Sem ser chamado, o menino perscrutador acompanhou a mãe naquela pequena incursão. Lá chegando, claro, ele nada falou nos seus nove ou dez anos, mas observou ocorrência muitíssimo significativa e prontamente anotada nos alfarrábios da memória fresca e prodigiosa.

Na ponta de uma grande mesa forrada com linho branco elegante, uma menininha linda, clarinha, olhos e cabelos pretos, sobrancelhas arqueadas talvez pela falta de apetite, postava-se à frente de um prato, meio contrariada, com o seu almocinho quase concluído.

De saída, a mãe do menino, então, recorrendo à cena, exclamou:

– Preste bem atenção e copie o exemplo. Ela almoçou bem direitinho, educadamente, e não sujou sequer as beiras do prato. Ô menininha educada. Dá gosto.
Ao que o menino observador, respeitosamente, respondeu:

– É mãe. Prestei atenção foi que, se essa bela garotinha comesse três conchas das grandes de feijão e seis de arroz, e mais a carne e mais a verdura, quero ver se ela não melaria as beiradas do prato. Deixa está!

Pois bem. Um belo dia, eis que chegaram à pequena e pacata cidade dois meninos vindos da capital. Os pais deles haviam falecido numa época em que a meningite assolou aquela terra benfazeja. Então, uma tia, esposa do barbeiro mais alinhado da cidadezinha, apiedou-se da situação e levou os dois para a sua casa.

Eram bem educadinhos, segundo as conveniências dos inteligentes que perdem os pais e o lar. O mais velho foi imediatamente destaque na quadra e no campo de futebol. Era muito bom na pelota, como se dizia antigamente, e um zero à esquerda na escola. Apesar dos catorze anos, trocava as bolas gerais na hora de fazer as tarefas escolares mais simples possíveis. Mas era trabalhador. Tratava peixe e galinha como poucos. E era desenrolado na cozinha.

Enquanto isso, o mais novo, aí pelos oito de idade, era mais esperto que camaleão na ratoeira. Negrinho retinto, azulado, magro, espevitado, sorriso largo em dentes muito brancos, olhos amendoados, cabelos lisos e pretos, usava umas botinhas de couro com as quais até jogava bola, ou ia à escola, à matinê e à missa. Carregava o pomposo nome de Marcos Vinícius, mas a plebe ignara passou a chamá-lo de Breu, simplesmente.

Os vizinhos da frente logo gostaram daquele mulatinho falante e educado. É que eles também tinham, em casa, um outro moreninho serelepe, da mesma idade, que fazia mizuras e reinações pela cidade afora.

Foi aí que, numa tarde de Domingo, o irmão mais velho deste último, dado às leituras intensas, houve por bem dizer que o Breu lia muito melhor e mais rápido que o seu irmão.

Daí então foi feita uma aposta e dois gibis foram tirados de cima do guarda-roupa inalcançável. O título da primeira historinha era Os robôs monstros. A segunda historinha era intitulada Tio Patinhas vai à forra. O irmão danado gaguejou, mas leu o título do texto ambientado em Patópolis. Daí, foi a vez do Breu, que não cabia em si de vontade de se ter enquanto leitor mais rápido que o outro. A pressa foi tanta que ele tascou: OS ROUBOS MONSTRÓS.
Dessa muitos ainda lembram.

O menino atento ficava sentado a uma cadeira de balanço, à tardinha, lendo alguma coisa, enquanto chegava a hora da janta que, em muitas das vezes, era composta por paçoca de jabá, baião de dois e chá de capim santo. Coisa de cearenses. Dos deuses.

Na frente da casa, morava uma família de muitas posses, quatro moças belas e cinco rapazes fortinhos e muitíssimo amistosos. O penúltimo, em idade semelhante à do menino observador, comprava os gibis, não lia nenhum, passava todos, novinhos em folha, o anotador se aproveitava das circunstâncias favoráveis e, inclusive, até pedia que lhe fossem comprados livrinhos de palavras cruzadas, coisa desconhecida pelo amigo bacana.

Um dia, talvez nas férias de julho, aos doze de idade, mais ou menos, o menino fortinho chamou o observador para uma brincadeira da manja, só os dois, pela rua afora.

Era muito fácil. O magro saía correndo, fazendo voltas, e o gordo saía atrás bufando de cansaço. Quando este ia quase tocando o outro, vinha uma rápida esquiva e a brincadeira continuava, talvez, com o intuito de fazer o amigo emagrecer um pouco.

Numa dessas ocasiões, então, uma senhora também fortinha, às cinco e pouco da tarde, havia colocado cadeiras na calçada para que, com a filha, desfrutasse o frescor da tardinha. Foi naquele exato momento em que as duas, talvez, tivessem ido beber água.

Vinham os dois correndo um atrás do outro. Vendo a situação favorável a uma pequena sacanagem, o magro, à frente, claro, de passagem, conseguiu puxar as duas cadeiras vazias atrás de si. O gordinho, já sem fôlego e sem freio, se estabacou na calçada, ele e as tais cadeiras; esta, uma ocorrência perigosa, posto que algo de muito pior poderia ter acontecido.

O amigo gordinho, todo ralado da calçada áspera, levantou da queda cuspindo brasa:
– Um dia eu te pego, féla-da-puta!

Estas são histórias de um arquivo memorial muito precioso aos índios xapuris. Benza-nos Deus!

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail claudioxapuri@hotmail.com –

A Gazeta do Acre: