X

A intangível nau dos loucos de pedra

A passeio em uma das cidades litorâneas do Rio de Janeiro, ao longe vislumbrou imagem translúcida e bela de uma amiga não mais vista desde uns dez anos. Morena clara, alta, esguia, de cabelos pretos a lamber as ancas vistosas em shortinho mínimo, aí pelas trinta e tantas voltas, ela já não conseguia andar, apenas desfilava, ou flutuava. Ele fizera estudos avançados numa das capitais do Nordeste brasileiro e lá conhecera a musa recifense em meio aos interlúdios etílicos de final de semana, em que amizades e romances são engatados ou feitos e desfeitos.

Sorrisos de ambas as partes se conectaram ainda a uma distância considerável. Coisas próprias dos encontros casuais. Cumprimentos um tanto extravagantes foram de um abraço em que as pernas dela flutuaram no ar, a um beijo bastante chupado para quem não se via há tanto.

Ela fixara residência em Portugal e permanecia solteira, em vista do rol de exigências na hora da captura ou escolha de um parceiro pela vida afora. Ele se dizia um desastre no trato com as mulheres e dava aulas em uma conceituada universidade do interior paulista. Para ambos, tudo corria de vento em popa, tanto é que houveram por bem prosseguir a conversa em um passeio de escuna pelas ilhas próximas. Nada mais relaxante para aquelas altas horas de uma manhã de sexta-feira em período de férias.

De início, as conversas tomaram um formato meio distante. Ambos diziam das suas experiências profissionais em localidades tão díspares. Citavam as características de cada lugar onde agora viviam, o tipo de gente ou as relações encetadas aqui e lá, os aspectos físicos das duas cidades e países, e assim por diante.

Um marujo musculoso de gravata e sem camisa trouxe-lhes um abacaxi destampado onde uma das etílicas, talvez vodca, agora, fazia-se passar por recheio. Dos deuses.

Ele, que se auto intitulava um tanto comedido, não se deixou levar imediatamente pelos volteios psicossomáticos advindos da ingestão do álcool àquela hora da manhã. Ela, no entanto, desde sempre folgazona e alegre, ficou ainda mais extrovertida:

– Por incrível que pareça, desde há muito tempo, o espírito nordestino brasileiro não me bate à porta da alma com tanta insistência. Vi você e quase sou outra. Estou bastante leve e precisando conversar muito mais sobre as coisas do Brasil com alguém ponderado como você sempre foi.

Aí pelo início da tarde, eis que a escuna chegou novamente ao atracadouro. Era hora do almoço e, por sorte, ambos se haviam hospedado na mesma pousada. Combinaram, pois, puxar um ronco e, às cinco se encontrariam para um chope ao acender das luzes.

Dito e feito, sem atrasos, à tardinha, sob um sol já bem ameno, lá estavam os dois, e mais uma outra circunstante, também nordestina e bela, na orla de João Fernandes, em um quiosque muitíssimo aconchegante, ali mesmo na Armação.

Os acepipes apimentados e o chope zero grau fizeram novamente desabrochar o espírito tropicalista na professora luso-brasileira que, a umas tantas, passou a fazer observações bem interessantes relativas à modernidade do mundo dos homens e das mulheres, assim do tipo no estilo nordestinês.

Pessoas solteiras, muito obviamente, sempre se auto questionam sobre os motivos da sua solteirice. Umas dizem que estão muito bem, obrigado. Outras, nem tanto. Algumas ficam caladas, como se aquele fator não fosse da conta de ninguém, e não é.

Foi daí que o diálogo passou a ser anotado em minúcias, pelo menos em níveis imaginários. Poucos eram ospitacos por parte dos demais, uma vez que a socióloga nordestina estava com uma ânsia louca por falar muito.

Depois de um intenso vagar apreciando o mar incrível ao redor, ela fez comentário atroz:

– Tenho pensado muito na questão dos homens. Foram as mulheres mesmo que se encarregaram de os meter nas maiores enrascadas possíveis, principalmente, hoje, quando cogitam o casamento a qualquer custo, ou enquanto uma panaceia para todos os males advindos do encalhamento. Pensando bem, para casar, seria melhor o mocinho encontrar uma puta nova iorquina ou uma moça prendada do sul de Minas Gerais?

– É verdade. Também penso assim. Se a esposa entre quatro paredes deve se comportar como uma vadia, por que tantas dúvidas quanto ao casamento com uma quenga? – Foram as palavras da terceira interlocutora, também nordestina, recém chegada ao grupo, ao que a socióloga arrematou:

– Porra! Esse preconceito besta foi criado por quem? Certo é que as mulheres, no geral, são as mais prejudicadas, em que pese as estatísticas ainda não possuírem dados mais substanciosos.

Ao que o professor interveio cheio das ênfases e salamaleques muito próprios dos intelectuais brasileiros:
– Para os fenomenólogos, trata-se de uma ocorrência muito comum na pós-modernidade. Serão as regras do acaso que ditarão os rumos de cada um. Depois, basta zelar para que tudo dê certo, ao menos por um ano ou dois.
E vem o arremate:

– Dificuldades tais são as mesmas encontradas pelas moças muito bonitas e famosas. Os homens bonitos e famosos tendem a colocá-las em segundo plano, porque dispõem de um sem número de fãs belíssimas ao seu redor querendo uma chance. Já os homens comuns têm medo delas. As ditas celebridades, segundo o pensamento popular, tendem a ser pretensiosas e exigentes demais, o que, em muitos dos casos, não é verdadeiro. Caras bonitas podem esconder corações de fada, certamente.

Para colocar um tempero mais apimentado, a socióloga remendou:

– Uma distinta da vizinhança, ainda em Garanhuns, vivia a falar muito mal dos homens, generalizadamente. Ela dizia que todos eles são terríveis verdugos e feiticeiros que sugam os corações apaixonados das mocinhas leves e doces como ela. Não tardou e todos perceberam que as pessoas com quem ela mantinha correspondência eletrônica eram todas do gênero masculino. A piranha não tinha sequer uma amiga. Ela apenas vendia uma imagem. Ora, pois. Vá entender as mulheres!

E ela continuou a pregação:

– Pegando a coisa por outro viés, lembro, ainda lá em Pernambuco, uma tia sertaneja. Ela era muito incisiva ao dizer que preferiria um feio estudioso e trabalhador a um lindo, burro e preguiçoso. Nem por isso eu a tenho enquanto uma oportunista. São estas as tais razões de mercado. É a lei da oferta e da procura. Que o destino não me ofereça e nem me coloque ao dispor um traste qualquer, claro. Se for o caso, eu prefiro escolher a mercadoria.

Creiamos. É preciso ponderar cuidadosamente, para não embarcarmos na mesma porralouquice da superior maioria dos neomodernos. Vivemos um tempo bizarro, é certo. Como deixou anotado um pensador que agora me foge o nome, o nosso século já não é um século de ouro. É um século de consumismo e fuga, um tempo de febre e esquecimento.

Se deu, deu. Se não deu, toca pra frente, porque, como os nossos dias, a fila anda e anda numa velocidade vertiginosa.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail claudioxapuri@hotmail.com

A Gazeta do Acre: