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De longe, nenhum deles era encapetado

Para José Edmilson Gomes de Figueiredo.

De perto, então, alguém tinha que anotar tudo, com olhos de lince e ouvidos de cobra choca, bem direitinho, em caligrafia mansa e leve e decente e em bom papel almaço para, bem depois, narrar as peripécias de uns moleques do barulho. Num dos dias do meio do século passado, pois, eis que estava pronto e novinho em folha e bem constituído aquele que se encarregaria da elaboração das tais crônicas do principado.

O menino observador e anotador passava os dias nas idas e vindas entre o colégio, a igreja e a vivenda barulhenta de meninos irmãos, arteiros até as tripas finas. Às vezes desviava o caminho e fazia o percurso pela rua da frente. Por ser afeito à vida escolar, era bem conhecido na pequena cidade, mas nunca parava para dizer palavra alguma a ninguém, para não perder tempo no desvio da rota costumeira. Em verdade, ele via marmotas e presepadas a perder de vista.

Esses moleques, aqui denominados serelepes, não apenas plantavam bananeira no meio do caudal, mas navegavam sobre troncos em épocas de enchentes. A brincadeira da barra, então, era inimaginavelmente perigosa, uma vez que começava de um lado e terminava, ou não, do outro lado do largo rio. O corrimão de uma ponte servia de trampolim para saltos ornamentais em águas profundas. Uma saliência arquitetônica da torre da igreja servia de pista onde os sacanas brincavam de pega-pega a quarenta metros de altura. Para desespero da polícia, havia, inclusive, a prática do roubo de galinhas em dias mais ou menos permitidos. Em meio a todas essas mesuras, as preocupações e interveniências dos pais, com todo o respeito, é claro, chegavam a ser prosaicas, viravam mangofa, dado o nível das peraltices dos serelepes arrojados da cidade em alvoroço. Dos cacetes.

De uma certa feita, pois, entre uma e duas da tarde, um dos tantos santinhos do pau oco estava sentado à janela da residência a planejar a próxima sacanagem e a palitar os dentes depois do almoço. Moreninho magro, cabelos lisos e de aparência razoável, zé preto passara boa parte da manhã, nu em pelo, aos doze ou treze anos, dando pinotes como cabrito e nadando feito piaba no igarapé cheio até a tampa.

Com as pernas balançando, da janela ele viu ao longe mocinha faceira, estilo chapeuzinho vermelho, que se dirigia à casa da vovozinha ali nas proximidades. Na palma da mão, ela levava uma oferenda gostosíssima a que dão o nome de pudim.

Feito um lobo mau, à espreita, agora palitando as unhas sujas e pontiagudas, ele permaneceu sentado no mesmo local como se nada tivesse visto, ou como se nada estivesse tramando. A passos largos caminhava chapeuzinho vermelho na mesma calçada da rua onde o serelepe a espreitava. E lá vem ela. E eis que ela se aproxima…

Subitamente, no justo momento da passagem da mocinha rente à janela onde estava o lobo, este deu um pequeno toque com o dedo médio e eis que a terrina do pudim se espatifou na calçada em dezenas de cacos.
De leve, a menina apenas vociferou por entre os dentes:

– Menino fidumaégua!

Vorazmente, o aqui denominado lobo mau, com uma puta vontade de traçar o manjar de sobremesa, usando as duas mãos, apanhou do pudim o pedaço maior que viu e o socou na boca como o esgalamido que ainda hoje é. Mas o destino cruel jogou cartada maluca contra o serelepe e, só de pirraça, deixou enganchar na goela dele um pequeno pedaço de vidro.

E aí começou a batalha contra o tempo. Três dias depois de uma longa viagem de batelão, eis que o nosso peralvilho deu entrada em uma casa de saúde da distante capital, onde houveram por bem tirar-lhe o engasgo perigosíssimo. Felizmente.

Em frente à matriz do santo padroeiro, de quando em vez, erguia-se toda uma estrutura destinada às quermesses, principalmente porque, naquela época, ainda não estavam concluídas as obras da igreja e do colégio dos padres e freiras católicos.

Tempo de fogueira. À noite, a festa era supimpa. O movimento se fazia muito grande. Respeitando o que a tradição prega, havia o bingo, o leilão, o casamento na roça, a quadrilha e todos aqueles mungangos próprios dessas festas juninas em que se tenta imitar o homem do sertão sem nunca conseguir, pelo menos no item vestuário. As famílias se organizavam para a elaboração das prendas. A meninada corria pra todo lado. Soltavam-se fogos de artifício em homenagem aos santos de junho. Balões subiam aos céus enfeitando ainda mais o arraial. Os folguedos eram dos melhores.

Durante o dia, entretanto, toda aquela estrutura parecia sem vida, a não ser pela ação de alguns serelepes que teimavam em fazer das suas ali por perto da igreja.

Numa dessas ocasiões, aproveitando que uma grande barraca havia sido erguida, um deles brincava ali por perto, num carrossel, talvez.

E foi aí que ele quis ser um equilibrista de circo andando por sobre os bambus que, colocados na horizontal, separavam o público da mesa onde eram colocadas as prendas à venda. Havia uma passagem estreita à guisa de portão por onde as pessoas tinham acesso à mesa.

O peralta, de descendência libanesa, meio fortinho, muito bem parecia o menos gordo dos três porquinhos, talvez o Prático. Ele já ia mais ou menos pela quinta volta correndo e se equilibrando em cima dos bambus. Foi quando o erro aconteceu. Em desequilíbrio, ele caiu e findou por rasgar o saco escrotal na ponta mal serrada de uma das hastes.

Era muito sangue e os ovos do menino estavam de fora. A correria foi grande e, mais uma vez, os pais tiveram que buscar auxílio junto aos médicos da capital.

– Vá ser danado assim no inferno! – Foi o que disse o velho padre.

Naquela época em que as famílias saíam dos seringais em busca de sobrevivência nas cidades amazônicas, eis que apareceu na comunidade uma família formada por duas filhas, dois filhos e os pais destes.

Todos eles eram bastante educados, mas o menino mais novo foi chegando e foi dizendo para todos que era muito macho… E isso e aquilo e aquilo outro.

Certo bacana, garoto extremamente arteiro e residente ali na vizinhança, foi levando tudo na brincadeira. De vez em quando, ele dava corda no valente:

– Vai lá, onça! Dá-lhe uma mãozada.

De certa feita, então, o menino bacana havia comprado uma bomba de artifício daquelas pesadas, de uns quinze gramas de pólvora. À tardinha, de posse do artefato, ele chamou o valente e disse:

– Você disse que é macho, que atira de espingarda e talital. Eu vou acender esta bomba e você vai segurá-la na mão até quando ela explodir. Quero ver se você é foda mesmo.

O brabo segurou a bomba e quatro dedos da mão esquerda voaram para nunca mais voltar.

Depois, quando foi chamado à responsabilidade, em casa, o bacana apenas disse:

– Mãe. Ele disse que era muito macho. Olha aí a merda que deu!

De longe, filhos de famílias tradicionais, todos eram educadíssimos segundo os mais belos preceitos da moral e dos bons costumes. De perto, entretanto, não se deve dizer que eram o cão chupando manga, mas, sim, um Deus nos acuda. No real e no imaginário, a rapaziada dava nó em pingo d’água. Como diziam os velhos cearenses daquela tribo atribulada, os camaradinhas eram mesmo fogo na roupa… Do caráter.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail claudioxapuri@hotmail.com >

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