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Frei Heitor Turrini, uma personificação de Laudato Si do Papa Francisco

O Papa Francisco estará na Amazônia Sul-ocidental em cinco meses. No dia 19 de janeiro do ano que vem, o Papa visitará Puerto Maldonado no departamento peruano de Madre de Dios, fronteira com o Acre, para apoiar povos indígenas e encorajar as populações regionais a cuidar da Amazônia.

A visita dele é para dar continuidade a sua Carta Encíclica Laudato Si publicada em 2015 para tratar da situação da nossa Casa Comum, a Terra. Mas muitas das lições contidas nesta Encíclica eu já tinha recebido do Frei Heitor (Ettore) Turrini, um padre católico da Ordem Servos da Maria, que chegou no Acre na década de 1950.

Quando a Carta Encíclica foi publicada em 2015, ela provocou um impacto marcante no mundo porque o Papa analisou a situação atual e a necessidade de cuidar da Terra. Como cientista preocupado com mudanças ambientais globais, eu encontrei na Carta Encíclica mensagens-chave sobre problemas, e mais importante, sobre possíveis soluções. Mesmo como agnóstico, eu reconheço que espiritualidade e fé são essenciais para que a humanidade possa superar os seus problemas e, segundo Laudato Si, “reparar o dano causado pelos humanos sobre a criação de Deus”.

Em 28 de julho de 2015 nesta página do Jornal A Gazeta, eu fiz uma análise da Carta Encíclica e das três revoluções que percebi no documento. A primeira revolução é o paradigma de como tratamos a Terra, mudando nossas atitudes de usá-la simplesmente como uma fonte de recursos para tratá-la como “irmã” e “mãe”. O Papa citou São Francisco de Assis, tratando o sol, o vento e a água como irmãos, aliás, vendo todas as criaturas com espírito de Deus.

Quando li estes textos me lembrei de uma conversa de uma década atrás com o Frei Heitor. Ele me disse “as árvores têm alma”. Ele deve ter visto a minha expressão de surpresa e repetiu a frase. Ele esclareceu que não era como uma alma humana, mas tinha o espírito de Deus presente, algo que Laudato Si declara.

Um dia, quando conversamos sobre possíveis meios para frear desmatamento, o Frei declarou que esta conversa fez trilhões de árvores sorrir na Amazônia. Fiquei surpreso novamente e consultei com outros cientistas. Confirmamos que tem mais de um trilhão de árvores na Amazônia, se incluir mudas, então o Frei acertou o número.

Dizer que as árvores que estão sorrindo é outra coisa, porque pressupõe que existe comunicação com árvores. Mas pesquisas recentes apontam que florestas têm redes de fungos que permitem que as árvores troquem informação, isto é comunicar. A questão de sentimento de felicidade, porém, não consegui determinar ainda.

A finalidade de Laudato Si é provocar ação para cuidar do planeta e dos seres humanos. O Frei Heitor, assim como os outros missionários que vieram da Itália na mesma época, como Frei Paolino Baldassari e Frei André Ficarelli, foram pessoas de ação. No caso do Frei Heitor, estas ações incluíram trabalho com recuperação de presos por muitas décadas. Durante a ditadura militar, por exemplo, ele foi um dos poucos que conseguiu visitar presos políticos em São Paulo.

Aqui no Acre, ele promoveu discussões sobre como cuidar dos pobres e das florestas, inclusive enviando um abaixo-assinado para o Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso que levou o Frei para uma reunião com o Presidente. Ele queria uma moratória para o desmatamento na Amazônia por pelo menos dez anos.

Mas, das lições que mais me impressionou foi numa viagem de Sena Madureira a Comunidade do Toco Preto, em 2007. Um ano antes uma pesquisadora portuguesa foi assassinada nesta comunidade. Um amigo dela, Eduardo Borges (Cazuza), e eu fomos pagar os assistentes de campo dela e o Frei foi conosco para rezar por ela.

Na velha estrada entre Sena e Toco Preto ouvimos uma motosserra em ação. O Frei com 82 anos pediu para ir até a motosserra, ele queria solicitar aos trabalhadores que não cortassem a floresta.

Um quilômetro na frente, fogo tinha pulado ao outro lado da estrada e estava iniciando um incêndio florestal. Eu lamentava e ia continuar a viagem, mas o Frei me mandou parar, ele saiu da camionete e pegou um galho para abafar as chamas.

Preocupado que o Frei pudesse se machucar, Cazuza e eu fomos atrás do Frei. Depois 15 minutos conseguimos apagar o fogo. A lição que o Frei nos deu foi profunda: agir faz a diferença. Tivemos material como terçados e pás para apagar o fogo, mas achávamos que não ia adiantar, isto é, estávamos sem vontade suficiente para fazê-lo. Ele agiu e o fogo foi controlado.

Em um outro exemplo, o Frei estava na Itália por problemas de saúde oito anos atrás. Eu pensei que ele ia ficar quieto, mas ele decidiu fazer o transporte local mais coletivo, algo que o Ladato Si recomende. Ele viu que quase todos os carros na Itália só tinha um ocupante. Quando ele queria se deslocar, o Frei tentava pedir carona, mas na primeira tentativa, dezenas de carros passaram e não pararam, mesmo para um frade idoso de cabelos brancos.

Ele mudou a tática, pegou um capacete emprestado e o colocou abaixo de seu braço quando pedia carona. O primeiro carro parou e lhe deu uma carona. Na conversa o motorista perguntou onde estava a motocicleta do Frei. “Em Sena Madureira”, ele respondeu. O motorista em Bologna, Itália ficou um pouco perplexo e perguntou onde fica Sena. O Frei sorriu, dizendo “no Acre, na Amazônia brasileira”. O Frei Heitor conseguiu envolver dezenas de motoristas nesta sensibilização para ajudar os outros e desenvolver mais solidariedade.

Todos nós temos as nossas frustrações na vida e o Frei tem pelo menos duas. Primeiro, ele quer uma moratória para o desmatamento da Amazônia para deixar a floresta viver. Ele se sente parte da floresta, parte da biosfera, uma identificação que Laudato Si promove, e chora quando ele vê a destruição que estamos fazendo.

A segunda frustração foi não poder ser missionário na China. Uma vez o Frei me falou que celebrou uma missa na China Comunista, na época de Mao Zedung quando poucos estrangeiros tiveram acesso ao país.

O Papa daquela época lhe informou que ele só poderia ficar na China se conseguisse um outro padre para acompanhá-lo. Nas três tentativas, os padres que foram com ele desistiram. Alguns meses atrás ele me falou da oportunidade perdida, referindo-se a população da China, que um milhão é uma coisa, um bilhão é outra.

Mesmo acostumado a suas ações, tive dificuldade em acreditar que ele foi a China naquela época, até que descobri um artigo no jornal de 14 de dezembro de 1970 com a manchete “Dois Padres Católicos Visitam a China Vermelha”. O artigo não citou nomes, mas indicou que eram “missionários italianos de Servos de Maria que estiveram no Brasil”.

Como bom agnóstico, agradeço a algo-que-não-sei-o-que-é por ter tido a oportunidade de conhecer Frei Heitor. Agora ele está no fim da sua vida e em cada visita ele me lembra que talvez o nosso próximo encontro seja no paraíso. Ele nota que a sua saúde e sua memória estão deteriorando e declara com sorriso “Estou muito feliz de viver e muito feliz para partir”.

O Frei considera o mundo fundamentalmente bom, mas com problemas de ganância que precisam ser vencidos, como colocado no Laudato Si. Ele declara frequentemente que “O mundo quer ser unido”.

Alguns anos atrás ele me fez uma pergunta, “Você está cuidando da floresta e dos pobres?” Juntando estes dois assuntos, o Frei antecipou Laudato Si e via as ações da sua vida, personificou a mensagem da Carta Encíclica. Espero que até o fim da minha vida, eu possa responder de uma maneira que vá deixar o Frei feliz no paraíso.

A Carta Encíclica Laudato Si pode ser acessado em várias línguas no sitio: http://w2.vatican.va/content/francesco/it/encyclicals.index.html.

Foster Brown, Pesquisador do Centro de Pesquisa de Woods Hole, Docente do Curso de Mestrado em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais (MEMRN) e do Curso de Mestrado em Ciências Florestais (CiFlor) da UFAC. Cientista do Programa de Grande Escala Biosfera Atmosfera na Amazônia (LBA), do INCT Servamb e do Grupo de Gestão de Riscos de Desastres do Parque Zoobotânico (PZ) da UFAC. Membro do Consórcio Madre de Dios e da Comissão Estadual de Gestão de Riscos Ambientais do Acre (CEGdRA). Coordenador do Projeto MAP- Resiliência.

Frei Heitor Turrini, Sena Madureira 10 de março de 2010.

A Gazeta do Acre: