Muitos chegam em carrões blindados e pagam bastante caro para conseguir, através de exercícios extenuantes, fazendo força descomunal nas traquitanas da academia, aqueles músculos e aquelas formas sublimes admiradas por quase todos. Parte considerável deles atinge o estágio sonhado e megalomaníaco em que a vontade sacrossanta é findar por comer a si próprio, em prato de porcelana chinesa, de tão gostoso ou gostosa que se fica. Uma doidice. Em verdade vos digo, caríssimos irmãos: desde que o mundo é mundo, a vaidade acompanha os humanos e, muito especialmente, aqueles que, como o pavão, estão sempre preocupados com o lustroso das penas e o colorido do rabo.
Animado, mimado e já falando pelos cotovelos e calcanhares, depois da ingestão de três canecas do gelado, estava lá ele a esperar o irmão. Há três anos não o encontrava.
Filhos de família promissora, ambos teriam saído do recôncavo baiano e seguido caminhos diferentes. O mais velho, fizera curso superior, tornara-se enfermeiro, ficara na terra da garoa e, mais recentemente, aposentara-se. O mais moço, contratado engenheiro por uma estatal, estabelecera-se na cidade maravilhosa por alguns anos e, depois, em vista dos polpudos rendimentos oferecidos, transferira-se de mala e cuia para o longínquo Acre, terra das boas promessas que se cumpriram na realidade. (Como dizia o Zé Leite, ninguém vai praquela terra impunemente.)
Bar do Sacha, Rua Delfina, Vila Madalena, sexta-feira, dezessete horas. Ali estava o Asdrúbal, já no quinto chope, dando em cima de um petisco, olhando pras mina, fazendo hora ou, como dizem os acreanos, dando um tempo enquanto o macaco amolece.
De longe, ele já viu o negão de metro e oitenta manquitolando, perneteando, assim do tipo aqui tá raso, aqui tá fundo. Pensou no pior. Ó céus! Poderia ter sofrido um acidente nos últimos dias. Poderia ser a sequela de algum mal dos que ultrapassam a quinta década. Mas não era nada disso e isso ele percebeu pelo sorriso largo na cara do irmão elegantemente vestido num jogging cinza clarinho, óculos em design italiano, boné verde palmeirense e tênis branco no estilo atleta impecável.
Os cumprimentos foram altamente efusivos, barulhentos ou solenes até, em vista do vozeirão emanado dos dois que há muito não se viam. Abraços, estrondosos tapas nas costas, duas lágrimas de cada e, enfim, tomaram assento.
– Sim. Diga lá o porquê do andar desse jeito meio torto?
– Foi no início da semana passada, há onze dias. Agora estou frequentando uma academia de bacanas e tive um probleminha. Coisa de quem está ficando sexy, ou sexagenários, como nós. Em síntese, machuquei um dos ligamentos, travei legal, mas já estou quase inteiro. Meio que pronto pra outra… Porra, negão! Manda ver aí um chope!
Numa definição meio paulistana, Petrônio havia travado total no treino tridimensional, aquele que é praticado de segunda a sábado, mas é dividido em três fases distintas distribuídas em três dias que se repetem, bem puxados.
Pouco falaram sobre as esposas e filhos e foram resumindo tudo na base do lá em casa estão todos bem, graças a Deus. O tema família não era tão interessante. Importante agora era a conversa sobre a academia Gymnasium.
O Petrônio ensejou quase uma ópera:
– Porra, mano velho. Ainda me impressiona muito aquilo lá e eu fico só manjando a galera que trata muito bem o negão aqui.
Segundo o nosso atleta de certa idade, as academias frequentadas pela elite paulistana são uma loucura e um êxtase diários, em vista das moças mais bonitas do mundo que treinam apuradamente cinco ou seis dias por semana.
Para ele, engraçado é observar as diferenças entre as performances masculinas e femininas. De uma forma geral, há uma quase contradição, quando se observa que os homens parecem sofrer muito e as mulheres, quase nada, ou nada mesmo. Está no dêeneá delas suportar o insuportável.
– Uma moça daquelas arrasta trinta quilos em um supino e não geme e nem faz careta. Ao passo que os marmanjos fazem um estardalhaço danado. Eles gemem, esturram, fazem caretas horríveis e, depois, soltam no chão os pesos, como se estivessem com raiva do piso de borracha que nem se parte e nem se quebra.
– Vejo isso também lá na Academia Demais, frequentada por mim, entre os aquirys. Mas lhe digo que os meninos parecem querer dizer para as moças que são os verdadeiros heróis da humanidade. A mensagem transmitida pelos machões é que a força deles é tamanha que o universo não funcionaria se não fossem os seus berros e esturros a partir das suas salas de musculação.
– Engraçado é que, entrementes, as moças fazem o seu trabalho em silêncio e apenas deixam às claras uma beleza estonteante que sai das suas formas maravilhosas. Deus do céu!
– Digo a você que as mulheres não precisam gemer tanto e nem gritar, nas academias, para dizer o que são ou a que vieram. Elas são conscientes do dever a cumprir e deixam os gemidos e gritinhos adoráveis para aqueles momentos de êxtase divinal em que também os lindos olhinhos revirados são realmente necessários, inclusive, para a procriação e para a sobrevivência da espécie humana.
Animação geral. Risadas estrondosas. Oito da noite e a conversa corria solta. Nas idas e vindas ao banheiro, o Petrônio destravara e já não mais manquitolava. Chegava-se a pensar que muito do gestual daquele quase deficiente físico tinha origem no fato de o tal ser muito mimado pela esposa italiana, em casa, em Vila Ida, ali bem pertinho.
– Dia desses, na Academia, desci para o piso inferior e, ao me aproximar, pensei que aquilo lá fosse uma sala de parto. Eram seis da tarde, mais ou menos. Os caras gemiam alto, uns quase gritavam o brado retumbante. De relance, da entrada, vi ali uma sucursal do horror, uma espécie de anfiteatro dos gozos reprimidos, uma antessala do inferno de Dante. Dos cacetes!
Na calçada da Rua Delfina, então, passaram três moças muito belas, em trajes de academia. Elas cumprimentaram o Petrônio. Musas.
– Gosto de ver essas beldades malhando. Tudo é um colírio para as minhas vistas já cansadas. Probleminha é que algumas dessas moçoilas se instalam nos aparelhos e não sabem se praticam os exercícios de musculação, ou se namoram ao celular. Elas esquecem o mundo, perdem da memória a existência de Deus, e deixam no vácuo a noção de que a outra pessoa, que ali está parada bem à sua frente, também quer usar a traquitana. Como eu sou do ramo, já aproveito e jogo um charme. Vai que cola.
Digno de menção foi constatar que a academia de um sai a um custo de cento e cinquenta merréis mensais, enquanto a do outro custa quinhentas lascas. Coisa de paulistano de origem quatrocentona, ou nipônica, ou latina, ou ariana, ou do raio que o parta.
É assim mesmo. Dentre os mais aquinhoados, a boa qualidade de vida deve ficar mesmo muito cara e os suplementos alimentares têm de custar os olhos da cara extraídos a alicate, mas vive bem quem pode viver.
É justamente como dizia o Unamuno, para quem o homem costuma entregar a vida pela carteira, mas entrega a carteira pela vaidade.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail [email protected] >