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Os ‘Varadouro’, quem diria, foram um grande empecilho para a integração terrestre do Acre* (Final)

Apesar das criticas públicas por parte da elite econômica e política acreana, a Comissão Federal de Obras instalada em Cruzeiro do Sul, dirigida pelo engenheiro paulista Antônio Bueno de Andrada, recém-nomeado prefeito do Departamento do Alto Juruá, insistiu em trabalhar para atingir seu objetivo mais importante: a construção de uma estrada entre Cruzeiro do Sul e Sena Madureira a partir de 1908.

A prioridade por parte dos seringalistas e comerciantes acreanos da época, entretanto, era o investimento na desobstrução dos rios por onde a produção de borracha e os produtos do comércio eram transportados entre Belém-Manaus e o Acre, e, principalmente, a melhoria e ampliação da extensa malha de varadouros então existentes e que garantiam, no inverno e no verão, a movimentação de pessoal, da produção e do comércio dentro, entre os seringais e, em alguns casos, dos seringais para as sedes dos Departamentos administrativos acreanos da época.

Os varadouros, criação dos indígenas brasileiros usados desde o período colonial para facilitar a locomoção no interior da floresta, foram adotados pelos seringalistas da Amazônia para viabilizar a produção e o escoamento da borracha na floresta.

Nos seringais, sua abertura era feita com a participação de mateiros e toqueiros. Inicialmente os mateiros adentravam a floresta para identificar áreas com grande densidade de seringueiras, geralmente localizadas longe das margens dos rios. Ao encontrar tais áreas, eles atiravam para o alto para orientar os toqueiros na abertura de caminhos até essas áreas. Esses caminhos principais, que interligavam a sede do seringal até a zona rica em seringueiras no interior da floresta (também chamados de ‘centro’), são conhecidos como varadouros. Nas zonas ricas em seringueiras, as trilhas abertas interligando as árvores de seringueira são conhecidas como ‘estradas de seringa’. As ‘colocações’ ou moradias dos seringueiros eram instaladas nas proximidades e abrangiam 3-4 estradas de seringa.

Nos seringais, os varadouros são caminhos estreitos, com até 2 m de largura, suficientes para a passagem de cavalos, bois e, principalmente, burros de carga. A maior parte deles fica constantemente na sombra da floresta, protegida da incidência direta dos raios solares, e por isso são afetados negativamente pelo excesso de chuvas e cheias de rios e igarapés. Essa desvantagem, entretanto, era uma vantagem para quem caminhasse no mesmo, pois seguiria por quase todo o caminho protegido do sol inclemente.

Apesar de demandar constante investimento em manutenção para permanecer trafegável no período do ‘inverno amazônico’, essa aparente desvantagem tornava os varadouros uma infraestrutura extremamente sedutora para os habitantes locais: com no máximo 2 m de largura, eles eram de fácil e rápida construção e o seu custo de manutenção era infinitamente inferior ao de uma estrada de rodagem como a planejada para ligar Cruzeiro do Sul e Sena Madureira. Além disso, o fato de os varadouros serem transitados diariamente por pessoas em comboios transportando mercadorias e borracha desestimulava o trânsito de onças e outros animais que pudessem causar problemas aos viajantes.

Um relato de uma cansativa viagem feita na ‘Estrada Lobão’ (Rio Branco-Sena Madureira) em 1910 pelo médico Esperidião de Queiroz Lima indica que a comitiva pegou chuva, sol forte e viveu constantemente aterrorizada com o possível ataque de onças, cujos rastros abundantes indicavam sua presença frequente na estrada. Como naquela época não existiam moradores ao longo da estrada e o trânsito de pessoas era mínimo, usar a mesma para longas jornadas a pé além de extremamente desconfortável era muito perigoso.

Assim, os argumentos contra a estrada planejada pela Comissão de Obras Federais eram muitos para a turma que defendia os varadouros: longas caminhadas com exposição aos raios solares, calor intenso, chuvas, as onças, e a falta de integração comercial entre os departamentos.

Até denúncia de corrupção feita pelo herói da revolução acreana, Plácido de Castro, contribuiu para a derrocada da ideia de construção de estradas no Acre. No caso da ‘Estrada Lobão’, Plácido de Castro, na qualidade de prefeito interino do Departamento do Alto Acre, denunciou que seu antecessor, Raphael da Cunha Matos, tinha contratado ao engenheiro Gastão Lobão o levantamento topográfico de um caminho ligando o rio Acre ao Iaco ao custo de 30 contos de réis. Ocorre que o referido caminho já existia desde o tempo da revolução acreana. Posteriormente se viu que a ‘Estrada Lobão’ foi uma mera transformação de um antigo varadouro.

Sem importância comercial e prática para os seringalistas e para as prefeituras, tanto a ‘Estrada Lobão’ quanto a ‘Leste-Oeste’ (Cruzeiro do Sul-Sena Madureira) – esta última em grande parte aberta na forma de varadouro – foram abandonadas. E a percepção da inutilidade de estradas ligando o Acre de leste a oeste permaneceu por alguns anos. Em 1920 o primeiro governador do Território Federal do Acre, médico Epaminondas Jacome, ainda concordava que a construção de estradas de rodagem ligando as cidades do Território do Acre era inútil por não existir comércio entre elas e por não haver perspectiva alguma de relações econômicas a médio e longo prazo.

É importante, entretanto, ressaltar que os varadouros nunca foram uma alternativa local às estradas de rodagem. Eles serviram apenas para a manutenção do status quo dos seringalistas garantindo o pleno funcionamento dos seringais. Em sua maioria os varadouros, especialmente os que ligavam os seringais às sedes das prefeituras de então, eram vias “artificiais” auxiliares dos caminhos fluviais que levavam a borracha e traziam as mercadorias para consumo nos seringais.

Dessa forma, sem ter muito que fazer diante da ampla oposição econômica e política dos poderosos seringalistas acreanos, a Comissão Federal de Obras do Acre foi extinta em 1910 e o caminho terrestre aberto entre Cruzeiro do Sul e Sena Madureira foi esquecido.

A abertura de uma estrada de rodagem de verdade só se concretizou em meados da década de 70, quando as frentes de trabalho do Exército Brasileiro vindas simultaneamente das cidades de Cruzeiro do Sul e Tarauacá se encontraram em algum ponto nas cercanias do rio Liberdade.

*Texto baseado no artigo “A Força dos Varadouros na Amazônia: o caso da Comissão de Obras Federais do Território do Acre e as estradas de rodagem (1907-1910)”, de autoria de André Vasques Vital, publicado na revista “Fronteiras: Journal of Social, Technological and Environmental Science”, v.6, n°. 1, p. 22-44, 2017.

*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do INPA/Parque Zoobotânico da UFAC.

A Gazeta do Acre: