Há momentos na história nos quais a tensão e os interesses em jogo conduzem inexoravelmente à perda da razoabilidade e até da noção do ridículo. Já houve o tempo das fogueiras, das guilhotinas, dos campos de concentração, dos nossos “porões de interrogatórios”, com paus-de-arara e máquinas de choques elétricos, e por aí vai…
Parece que finalmente chegamos (ou retrocedemos) na Era do Policiamento da Arte.
Pelo menos três grandes veículos de comunicação global – The New York Times, The Washington Post e The Guardian – dedicaram generosos espaços ao Brasil nos últimos dias, para registrar o cancelamento de uma exposição promovida por um banco após a ação articulada de movimentos políticos e religiosos que consideraram inadequadas algumas das obras expostas. Primeiro, falou-se em “apologia à pedofilia”. Mas, após promotores de Justiça de defesa da infância e da juventude terem visitado o local e descartado tal ocorrência, falou-se então em “desrespeito religioso”.
No final, mesmo descartada a prática de crime, a mostra foi cancelada e desculpas foram pedidas.
Dias depois, incidente igual ocorreu em outra cidade, onde, pelo que foi noticiado, mesmo depois de algum tempo de exposição sem nenhum incidente, “deputados de bancadas religiosas” e “policiais” chegaram à conclusão que as obras de arte não eram adequadas para ficarem expostas, por também, “na avaliação deles”, fazerem “apologia à pedofilia”.
Segundo a imprensa, nem mesmo o Museu Nacional, em Brasília, ficou imune à fiscalização quanto à higidez da moral e dos bons costumes das obras ali expostas. E da devida “autorização” tácita para a sua exposição ao público.
Os movimentos culturais protestaram, alegaram censura à arte e perseguição política.
A arte é uma das mais antigas formas de manifestação humana. Desenhos rupestres da pré-história registram mitos e atos do quotidiano de então nas paredes de diversas cavernas espalhadas pelo mundo.
No entanto, a análise de uma obra de arte, principalmente pelo viés da moral e da religião, é algo extremamente complexo e perigoso.
Gian Lorenzo Bernini, um dos maiores gênios da arte sacra do século XVII, escolhido pelo Papa Urbano VIII (Maffeo Barberini) para manifestar a grandeza e o poder da Igreja Católica através de notáveis esculturas – atualmente expostas na Basílica de São Pedro e em diversas igrejas de Roma (de valor incalculável) -, em que pese o seu talento e a proximidade com a cúpula do Vaticano na época, teve uma de suas principais obras, talvez a mais fantástica delas, proibida de entrar na Basílica por ter sido considerada “pornográfica” pelo alto clero.
Trata-se da escultura intitulada “O Êxtase de Santa Teresa de Ávila” (ou Transverberação de Santa Teresa). Uma obra em que Bernini retrata em mármore a descrição da experiência mística narrada por Santa Teresa de Ávila, e o êxtase provocado pela flexada flamejante de um anjo serafim em seu coração: “Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro e, na ponta, o que parecia ser uma pequena chama. Ele parecia para mim estar lançando-a por vezes no meu coração e perfurando minhas entranhas; quando ele a puxava de volta, parecia levá-las junto também, deixando-me inflamada com um grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer; e, apesar de ser tão avassaladora a doçura desta dor excessiva, não conseguia desejar que ela acabasse…”.
O resultado dessa escultura, principalmente as expressões faciais do anjo e da freira, que no primeiro deixa transparecer um leve sorriso maroto e na segunda um misto de dor e prazer, provocaram o veto para que acompanhasse as outras notáveis obras do artista a adornar a famosa Basílica.
Atualmente, ela encontra-se exposta na Igreja de Santa Maria della Vitoria, em Roma. E, justamente devido à polêmica suscitada e ainda ao fato de ter aparecido no filme Anjos e Demônios, baseado na obra de Dan Brown, atrai milhões de visitantes por ano, ávidos por contemplar os polêmicos semblantes das estátuas.
Ao longo do tempo, diversos ensaios, artigos e críticas têm sido escritos a respeito da polêmica. Uns de caráter místico e sobrenatural, apontam a profundidade da experiência vivenciada pela santa. Outros, de caráter erótico, tentam atribuir um orgasmo à descrição, devidamente retratado na escultura. Mas a obra continua lá, para quem quiser visitá-la. Felizmente, nenhum fundamentalista religioso, nenhuma beata autoproclamada fiscal da moral e dos bons costumes e nenhum garoto apedeuta, autoproclamado crítico de arte autodidata, se arvorou a apreendê-la, encobri-la ou proibi-la. É simplesmente uma das maiores obras-primas já produzidas pela humanidade.
Certamente, pelo constrangimento que ainda lhes causa o fascismo do início do século XX, nenhum italiano, de qualquer espectro político, teria coragem de arvorar-se a fazê-lo.
De outro lado, o grupo terrorista Estado Islâmico, durante a sua ocupação de regiões na Síria e no Iraque, dedicou-se com afinco a destruir sítios históricos e obras de arte, produzidos por algumas das mais antigas civilizações do mundo e tombados como patrimônio da humanidade, por alegada “incompatibilidade com a sua religião e visão de mundo”, como o Templo de Baalshamin, em Palmira, datado do século II a.C; o Templo de Bel, em Dura Europos, importante entreposto comercial e marítimo do Império Parta, entre 247 a.C. e 224 d.C.; o sítio arqueológico da antiga cidade de Ninive, mencionada na Bíblia, uma das maiores cidades da antiguidade. Além dos museus e bibliotecas de Mossul, dentre outros.
Detalhe um: os povos da Mesopotâmia – Sumérios, Assírios, Caldeus… – produziam esculturas retratando corpos humanos nus e em relações sexuais. Algumas dessas obras estão expostas nos mais importantes museus espalhados pelo mundo. Visitados por milhões de pessoas. Queira Deus que não sejam também apreendidas ou destruídas.
Detalhe dois: a mesma insensatez quando praticada pelos outros ou por outros fundamentos, é sempre injustificável.
Por fim, afastada a hipótese de cometimento de crimes (por óbvio), a censura à arte, baseada exclusivamente em aspectos morais ou religiosos (mesmo que servindo de pretexto para razões de natureza política), não encontra respaldo na sistemática constitucional, que consagra dentre os direitos fundamentais assegurados, as liberdades de expressão e de manifestação do pensamento.
A este respeito, diz expressamente o texto da Constituição Federal, no inciso IX do artigo 5o: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
E o inciso II, do mesmo artigo: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Ao que parece, os preceitos constitucionais em comento são de clareza solar, não exigindo maiores comentários.
Portanto, de um lado, ninguém é obrigado a frequentar, concordar, gostar, admirar, permitir que seus filhos frequentem (muito embora a televisão e a internet não sejam exatamente puritanas)…
De outro lado, a mesma Constituição permite a crítica, a discordância, o contraponto, a manifestação em contrário, o boicote… só não permite a censura.
Ademais – haveremos de concordar -, não é exatamente nos museus onde as nossas crianças estão a correr os maiores riscos.
Portanto, que o sempre salutar, indispensável e elogiável engajamento desses mesmos movimentos de parte da sociedade, na defesa das crianças e no combate à pedofilia, não fique restrito exclusivamente à análise de obras de arte em museus.
Existe muito trabalho a ser feito nessa seara. Muito embora, certamente não gerará noticias em grandes jornais estrangeiros. E também é muito provável que não venha a angariar votos nas eleições que se aproximam.
*SAMMY BARBOSA LOPES, acreano, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre, mestre em Direito e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.