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Os manuscritos de Tombouctou*

Entre o Sul do deserto do Saara e a margem esquerda do Rio Niger, no Mali, encontra-se a antiga e misteriosa cidade de Tombouctou. Depois da Foz do Breu e Santa Rosa do Purus, na fronteira com o Peru, era esse o local a ser visitado. Demorei mais de dois anos pesquisando, lendo e me informando como chegar lá. Foi necessário obter o visto na Embaixada do Mali em Brasília. Visto para 30 dias com direito a apenas uma entrada.
O que me levou ao centro da África, não foi só conhecer a misteriosa Tombouctou, antiga e poderosa cidade do Reino do Mali, mas sim os seus tesouros culturais: milhares de manuscritos tombados pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, depositados em duas importantes Bibliotecas.Os originais e antigos livros manuscritos de Tombouctou, muitos datados do século XIII, são tão valiosos e únicos que poderiam ser consideradoscomo uma nova Biblioteca de Alexandria.
Ao planejar a viagem, com o apoio da Embaixada do Brasil em Bamako, capital do Mali, de bibliotecários e diretores ada Biblioteca SAVAMA e do Amhed Baba Institute, soube que Tombouctou, em função dos ataques dos guerrilheiros do Estado Islâmico estava interditada para estrangeiros. Poderia ir apenas até Bamako. Mas havia outra informação importante: pelo risco que corriam, os milhares de documentos manuscritos em pergaminho de Tombouctou tinham sido transferidos para Bamako.
Assim, cheguei a Bamako via Casablanca em uma madrugada de novembro de 2017, viajando pela Royal Air Maroc. Do moderno Aeroporto local direto para o Sleeping Camel Hotel no Bairro de Badalabougou, próximo da Embaixada do Brasil. O Hotel é totalmente murado, sem indicação externa e com uma pequena porta de metal vigiada 24 horas por câmeras e guardasmunidos de fuzil Kalashinikov AK-47. Naquela madrugada, me sentindo inseguro, Bamako me lembrou Adis Abeba-Etiópia, um pouco mais iluminada e com mais tráfego de pessoas e motocicletas.
No dia seguinte, um domingo, almocei com a Sra. Maria Nalinge, Vice Consul do Brasil.Isso depois de ela ter ido à missa em um país de maioria muçulmana que, felizmente, vive em harmonia com Cristãos e Animistas. Perguntei para a Nalinge sobre os brasileiros no Mali, segundo ela deve ter uns 20 – essencialmente pastores evangélicos e suas famílias.
Na Embaixada Brasileira fui recebido pelo Conselheiro João Zanini, Encarregado de Negócios, que informou que Bamako é uma cidade sitiada por guerrilheiros, e por isso abriga a sede da MINUSMA, talvez a maior e mais dispendiosa força de paz da ONU. Ele foi veemente em me desaconselhar a sair da zona urbana. Atualmente a Embaixada brasileira alberga diplomatas Colombianos que negociam o resgate de duas religiosas colombianas sequestradas no norte do Mali. Soube ainda que o Brasil, através da EMBRAPA, fornece apoio – faz 10 anos – para a produção de algodão do Mali. Um dos últimos negócios do Brasil foi avenda de aviões Tucano da Embraer para a Força Aérea do Mali. Nisso o Brasil é pragmático.
Depois das formalidades na Embaixada do Brasil em Bamako, era hora de visitar as bibliotecas onde estão guardados e é feita a curadoria dos Manuscritos de Tombouctou. Acompanhado de meu guia local, Sr. Seydou Traoré, fluente em Inglês, Francês, Árabe e Bambara, seguimos para o Amhed Baba Institute.
Tive a impressão que o prédio que abriga a Biblioteca, só pode ser encontrado por quem conhece a região. Do meu ponto de vista está localizado em uma grande favela, ruas sem nome e sem asfalto ou calçamento com esgoto a céu aberto, em um bairro densamente povoado, misto de comercial e residencial. Talvez essa seja uma estratégia para proteger os manuscritos, longe do centro da cidade.
A sede original do Amhed Baba Institute fica na cidade de Tombouctou, mas em razão da ameaça do Estado Islâmico os documentos, com apoio da UNESCO, foram transferidos para Bamako. Amhed Baba foi um antigo e influente pensador local que liderou a luta contra a invasão do Marrocos. Foi deportado para Marrakesh onde ficou em exilio por 14 anos, retornando para Tombouctou em 1606.
Fui recebido com carinho e generosidade pelos dirigentes do Instituto. Enquanto o bibliotecário “sênior” me conduzia pelas diversas salas de curadoria – apresentando o visitante – senti um ambiente de trabalho devotado, cuidado e respeito pela obra de zelar pelos manuscritos. Finalmente nos dirigimos a uma sala onde os manuscritos estavam guardados em caixas e urnas de vidro. Algumas foram abertas, com os manuscritos sob os meus olhos, mas nas mãos do bibliotecário. Caixas e caixas com livros e documentos escritos maravilhosamente, principalmente em árabe, mas também em outras línguas e dialetos do Saara. A visita se estendeu por algumas horas, com leitura de trechos dos documentos, perguntas e respostas, com o apoio do meu guia e tradutor.
A outra biblioteca é administrada pela SAVAMA uma ONG devotada à valorização e preservação dos manuscritos. A localização, o bairro e condições do prédio, faz parecer que as duas bibliotecas são gêmeas.A recepção na SAVAMA foi igualmente com sorrisos e gentilezas. Fui recebido pela simpática Diretora Sra. Aissata Gouanle e pela gentil Encarregada da Comunicação Sra. Coulibaly Konaté. Demoramos bastante em uma sala onde foi possível notar várias mulheres, cada uma com um “véu” colorido e arranjos diferentes, digitalizando páginas e páginas de manuscritos.
Minha impressão é de quando esses manuscritos estiverem disponíveis para estudiosos e pesquisadores, graças ao mundo digital, sem guerrilhas e sem fronteiras, o Ocidente ficará maravilhado com a cultura e sabedoria dos povos do Saara, nos tempos em que a Europa estava em plena Inquisição, queimando pensadores e “bruxas”.
Foi com orgulho que as Sras. Gouanle e Konaté me disseram que foram catalogados 9.500 manuscritos em dez bibliotecas na região de Tombouctou e que aproximadamente 150.000 manuscritos foram identificados, classificados e são guardados em curadoria pela SAVAMA.
Fui informado que eu teria sido o primeiro brasileiro a ter acesso às bibliotecas e apreciar os antigos manuscritos de Tombouctou. Possivelmente também o primeiro Sul Americano a ter esse privilégio.

A Gazeta do Acre: