Em tempos venturosos como estes, o cronista passa a ser personagem de si próprio. É que ele, praticamente, não tem uma vida particular, e isto já vem a partir da forma como foi educado, em colégio de freiras italianas. Da mesma maneira que no clichê, a vida é um livro aberto, numa época em que poucos leem alguma coisa mínima nesta província bacana chamada Brasil.
Depois do Carnaval, então, houve por bem devolver-se aos estudos elementares das matemáticas e da língua mãe. Estava vindo do interior. Sentia-se seguro e confiante nas artes da datilografia. Aprendera tudo no escritório do padre cearense. Dizia que estava a matar a cobra, mostrar o pau ensanguentado e a bicha morta. Benza-nos Deus!
Já de início, a divina providência outorgou-lhe o título de observador das estrelas e anotador de tudo. Até falava pouco, posto que as ocorrências eram muitas ao seu redor, como, agora, num dos anos do século passado, quando foi aprovado em concurso público e passou a ser funcionário da Augusta Casa.
Ali, ele começou a se alimentar de um pão que nutria a alma e um outro que enchia a barriga mesmo. A biblioteca compunha-se de obras clássicas e populares muito interessantes, que passaram a fazer parte do seu cotidiano. O chefe sertanejo, magro, moreno e boa gente, aplaudiu a constatação e disse-lhe que fizesse vestibular nos campos da literatura. Fez e se formou ainda bem moço. Através do mesmo expediente, passou em terceiro lugar e se matriculou no curso de direito, também. Mas ele preferiu dar aulas e fazer pose para as moçoilas secundaristas que lhe povoavam os sonhos. Esqueceu a toga.
Na Casa, ainda nos anos setenta, bem no início da carreira, ele logo se tornou secretário do sertanejo hoje morto, com direito a uma gratificação que lhe custeava as farras no meu cantinho, ou no jirau lanche. Vida melhor não rogaria a Deus. Nunca. Ele sentia vergonha em pedir e percebia que já lhe era dado demais através dos estudos.
Houve muito progresso. A Casa não mais poderia ficar restrita à capital. Era preciso levar conhecimento para os homens e mulheres do interior. Foi daí que partiu o seu orgulho por tornar-se membro do grupo de extensão que, por assim dizer, interiorizou os estudos superiores nas cidades mais importantes da província amada.
Um dia, então, um grupo dentre os pioneiros passou a aconselhar o velho menino moço a fazer cursos de pós-graduação, preferencialmente, em uma universidade de renome internacional. Era preciso saber mais para opinar com propriedade.
Ele se transferiu para uma outra cidade e estava muito feliz. Nasceu-lhe o primeiro filho e veio a defesa de uma dissertação de mestrado, com louvor e distinção, outorga muito comum na época. Não teria sido tão fácil, não fosse o bom papel desempenhado por um orientador meio padre, meio pai de família. Um bom homem. Que Deus o tenha.
Vieram épocas de glória. Em um congresso de nações latino-americanas, o cronista foi aplaudido de pé por uma plateia de mais de quinhentas pessoas, quando falou, por duas horas, sobre os aspectos históricos, econômicos e sociais da Amazônia sul-ocidental brasileira.
Na copa de 98, enfim, ele defendeu tese de doutorado que o fez tornar-se destaque da história da Casa, como o primeiro técnico-administrativo a conquistar o título de Doutor numa das maiores universidades do mundo, a Unicamp.
Daí, o presidente sertanejo pernambucano apareceu e o salário dos doutores mestiços do Brasil foi elevado em setenta e cinco por cento, através da assinatura de uma lei. Muitos ficaram tão felizes que não cabiam em si. Ele sorriu contente, da mesma forma que tem feito pela vida afora. Glória-glória, aleluia!
Agora, já era 2010. Há cinco anos, trezentas pessoas humildes não tinham direito a promoções funcionais, apenas porque a tal lei benéfica demais não tinha sido convenientemente adequada à realidade da Casa. Ele o fez sozinho. O plano de execução ficou pronto em dois meses. As avaliações foram feitas em pouco mais de um mês de cálculos. Os homens e mulheres simples que esperavam tal ação sorriram felizes. Enfim, um aumento salarial para os que ganhavam e continuam ganhando sempre bem menos.
A vida familiar ia sendo tocada em frente. Foi por esses dias que, em casa, nasceram-lhe filhos gêmeos muito graúdos e bonitos. Em outras palavras, uma felicidade em dobro. Duas figurinhas repetidas lindas.
Depois, ele elaborou projetos e ajudou a ministrar cursos, muito especialmente sobre relações interpessoais, dentre outros. Mais de seiscentos dos seus amigos humílimos participaram e tiveram, uma ou mais vezes, os seus rendimentos acrescidos. Ele dizia que adquirir conhecimento é muito bom, mas um aumento de salário ajuda bem mais.
Com tudo isto, ele ficava feliz por todos, ou muito mais que a maioria. Nada melhor que o tilintar das moedas nos alforjes de cada um dos irmãos que tanto mereciam e merecem melhorias de vida.
Da mesma forma que se fez Doutor, ele torcia para que outros também alcançassem tal patamar. Teimou que teimou. Viajou por estados brasileiros em busca de apoio. Houve quem manifestasse interesse, mas, para o desespero do mentor, a instituição dos catarinenses teve a nota diminuída, o que inviabilizou a execução do projeto. Outros disseram que não estariam dispostos a prestar o apoio, porque o Acre é muito longe e muitos dos doutos baianos tinham medo de viajar de avião.
O objetivo era a montagem de um curso de pós-graduação em nível de mestrado apenas para os técnicos administrativos da Casa. Mais uma vez, ele se fez recluso. Escreveu noite e dia, até que estava pronto um projeto que também saiu por aí em busca de guarida.
Um dia, pois, uma grande universidade do extremo sul do País acolheu o projeto e se dispôs a fazer uma parceria muito viável. Devagar, as coisas foram dando certo e tudo se foi encaixando com justeza e perfeição. Ademais, para a felicidade de todos, um dos grandes doutos da Casa emprestou apoio e tudo fluiu positivamente. Alvíssaras.
Certamente, a maior das alegrias da vida profissional do sonhador resplandeceu, iluminou e causou êxtase. Para pessoa alguma nada disse, mas ele não cabia em si de tanta satisfação. Lá estava uma sala repleta de alunos da primeira turma de técnicos administrativos tendo a aula inaugural do curso de mestrado em administração pública. Alegria contida. Coisas dos sisudos da academia. Ninguém notou o quanto ele estava feliz. Um grande sonho de muitos, como ele planejou, estava a tornar-se realidade a partir de um punhado de afoitos que acreditou nos devaneios de quem sempre viveu de delírios perfeitamente plausíveis.
Tudo hoje é passado. Mas ver o sorriso na cara dos bons traz tudo de volta ao presente. Nada é tão reconfortante quanto sentir a felicidade nos olhos dos humildes.
A principal proposta de vida foi sempre lembrar os momentos felizes, porque os dissabores e contratempos nos fazem envelhecer, e isso ninguém quer. Jamais.
Por lá a poesia personificada fez moradia e viveu os seus melhores dias. Tudo ocorreu da melhor forma possível, porque ali travou conhecimento e amizade com pessoas extraordinárias, que lhe ajudaram a realizar sempre o melhor possível. Fez história, sim, mas, acima de tudo, deixou exemplos que estão sendo seguidos.
A todos, pois, fica a eterna gratidão do poeta feliz.
*Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo [email protected]>