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Variados usos da palavra “cabeça”

O léxico da língua portuguesa é bastante extenso, embora o falante faça uso de poucas palavras no dia-a-dia. No dicionário de Aurélio Buarque de Holanda estão catalogados 435.000 verbetes (verbetes são as palavras com seus significados no dicionário). Mesmo com esse grande universo vocabular o falante poderá lançar mão de uma mesma palavra atribuindo-lhe uma multiplicidade significativa. Exemplo desse fato uso é a palavra “cabeça”, ora utilizada no sentido conotativo ora denotativo. Muitas personalidades importantes fizeram uso dessa palavra “cabeça” para traduzir pensamentos. Vejamos alguns desses usos:
1) Só quem não tem nada na cabeça é que fica repetindo que o governo é neoliberal. Isso é neobobismo (Fernando Henrique Cardoso); 2) Uma cabeça má arruína o corpo inteiro (Mariano José Pereira da Fonseca,Marquês de Maricá); 3) Homem é como fósforo, sem cabeça não vale nada (Adágio Popular); 4) Cabeça de todos nós – cabeça muito grande (Expressão Popular); 5) Política é a arte de enfiar a mão na merda e depois na cabeça (Milton Campos); 6) Têm dor de cabeça e se retiram (Otto Lara Resende); 7) Tenho 45 anos de idade, corpinho de 17, cabeça de 500 e uma alma eterna( Rita Lee); 8) Deus, amontoai os bens da terra aos pés dos tolos. Mas sobre a minha cabeça, derramai apenas as doces águas da serenidade. Dai-me o Dom do espírito tranquilo (Joshua Loth Liebman); 9) A última cena é sempre trágica, pouco importa quão felizes tenham sido as outras: um pouco de terra é jogada por cima de nossa cabeça e é o fim para todo o sempre (Blaise Pascal); 10) O que chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés. (Nelson Rodrigues); 11) O Brasil é de cabeça para baixo e, se você disser que é de cabeça para baixo, eles o põem de cabeça para baixo, para você ver que está de cabeça para cima (Tom Jobim); 12) Para passar o Brasil a limpo nas eleições deste ano é preciso, primeiro, tirar a limpo a história dos candidatos, pois a cabeça pensa onde os pés pisam (Frei Betto); 13) Não existe álcool que suba mais facilmente à cabeça que a lisonja (Tristão de Ataíde); 14) É perigoso guardar a cabeça cheia de sonhos quando se tem as mãos desocupadas ( Abílio Rofer).
2) Os exemplos do uso da palavra “cabeça”, em sentido conotativo, não se esgotam aqui. Mas o uso dessa palavra também figura em sentido conotativo. Assim, quando queremos utilizar a linguagem conotativa (sentido figurado), para chamar a atenção, em textos, usamos muito as figuras de linguagem. Estas tornam o texto mais expressivo, chamam à atenção do leitor e são utilizadas para dar um sentido diferente do que normalmente conhecemos e estamos habituados a ver. Vejamos alguns exemplos proporcionados pelo recurso da catacrese: cabeça do martelo; cabeça do prego; cabeça do pênis; cabeça do alfinete; cabeça de vento; cabeça do avião; cabeça de alho; cabeça de água.
Interessante de tudo é que toda carga essa semântica conotativa poderá aparecer em muitas frases, tais como: 1) Nessa política brasileira muitas cabeças estão a rolar; 2) Pegou o palito pela cabeça e queimou os dedos; 3) Ele é o cabeça da facção; 4) A casa está de cabeça para baixo; 5) A casa está de cabeça para cima; 6) Lá em casa chegou uma cabeça de vento que levou parte do telhado; 7) Escolheu plantar cabeças de cebola; 8) O rapaz fez a cabeça da namorada para o mundo das drogas; 9) Pagou alto preço por cada cabeça de gado; 10) O comportamento dos políticos fazem os brasileiros perderem a cabeça; 11) Sabiá entregou Rubinho. Isto lhe custou a cabeça; 12) Na cabeça do capítulo diz os personagens do livro; 13) Rui é um bom cabeça; 14) João é o cabeça da empresa.
Observa-se, ainda, que essa palavra “cabeça”, com as variadas possibilidades de uso, apresenta uma economia à flexibilidade da língua. E, nesse particular, o que é admirável não é que a linguagem emperre, mas que se desenvolva, ganhe múltiplos sentidos para atender às necessidades expressivas dos falantes. Aqui, é como diz Ullmann (1964, p.334), “Não interessa o número de significados que uma palavra possa ter no dicionário, não haverá confusão se apenas um deles fizer sentido numa dada situação”.
Percebe-se, então, pelos exemplos, que a polissemia está na base de inúmeros jogos de palavras. Mas o importante é que ela se desfaça no contexto de uso do falante. E o estudante deverá está atento para o uso de cada palavra. Ele deverá perceber, especialmente, a diferença, por exemplo, entre ele e o rio. O estudante deve deixar seu leito para seguir seu curso (destino), enquanto o rio segue seu curso sem deixar seu leito. O uso das palavras que para tanta gente é algo fácil, para outros é tremenda dor de cabeça. Assim, estudar é a solução para o bom uso do idioma pátrio.

 

Luísa Karlberg – É Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Presidente da Academia Acreana de Letras; Membro da Academia Brasileira de Filologia; Membro perene da IWA; Professora aposentada da UFAC; Embaixadora da Poesia pela Casa Casimiro de Abreu; Pesquisadora DCR – CNPq/FAPAC; Poeta, Escritora.

Fabiano Azevedo: