Será ele um pensador longevo, quando lograr subir o degrau que o ascenderá à octogésima volta ao redor do sol. Hoje, no entanto, o velho menino magro amanheceu azedo. Conseguiu a indizível façanha de travar um embate particular e ridículo entre o filósofo que ainda não é e o louco que logo deverá ser. Mais tarde, já depois do meio dia, passou piscadelas olhos nos olhos da psiquiatra já morta. Então, ela quis citar do Jerome Lawrence algo parecido com um aforismo segundo o qual o neurótico constrói um castelo no ar, o psicótico aí mora e o psiquiatra cobra o aluguel.
O antigo garoto magricela teve, em realidade, duas realidades. A infância foi bastante feliz e, por isto, atingiu um grau razoável de fortuna espiritual também na idade adulta. Por outro lado, a exemplo do que pensava o Chaplin, também não nasceu em berço de ouro e, como resultado, não se vem sentindo enjaulado por esta vida afora. Vive a felicidade à sua maneira, porque a alma se permite ser assim, sem muitas exigências, mas com um grau considerável de compromisso para consigo próprio e para com os que navegam ao seu derredor.
Quando, enfim, o céu desabou naqueles ermos amazônicos dos cafundós da terra xapuriense, já se haviam ido cinco longos dias de calor sufocante. Era pleno abril e, em mais uns dois meses e pouquinho, seria a temporada de férias no seringal. Ah! Eis parte da vida folgazã que mais regalava a alma arteira do menino magro em lombos de cavalo.
Sete ou oito luas mais tarde, uma aragem fria soprou na alta madrugada. O dia já amanhecera cinzento. Lufadas de um vento gélido prenunciavam dias e dias de frio intenso na Amazônia sul ocidental. E a friagem veio exatamente como vinha todos os anos, por muitos dias.
A essas alturas dos dias, já estava o menino magro em meio aos primos seringueiros. O vento frio brandia na folhagem vária das imbaúbas. Mas as atividades eram constantes e o sangue permanecia mais ou menos morno até que, mais tarde, o banho no igarapé sombrio enregelava o corpo e a alma do duende troteador. Era a hora da comidinha quente e saborosa feita pelas mãos de fada que bem representavam a boa arte culinária do seringal. Depois, o quarto fechado, o pijama, o cobertor boliviano e muita prosa, ali, à luz de lamparina.
No início do século anterior, Raimundo Sargento, o primeiro dono do seringal, chamava aquele local ermo de colocação socotó. Ninguém esqueceu. Mas colocaram um novo nome. O morador veio do Ceará e tascou uma denominação mais moderna, morada nova… Poucos chamavam assim, apenas os donos, tios do magricela.
Do parapeito da barraca, avistava-se, à noite, o espectro de uma grande cajazeira, já na borda do campo. Sobre esta, histórias horripilantes corriam e faziam correr os medrosos e metidos a besta. Aos pés da árvore, há muitas décadas passadas – diziam – alguns assassinatos aconteceram, visto ela encontrar-se um tanto próxima de um precipício escuro e enleado de cipós grossos e finos, além de raízes de outras árvores. Diziam lá ainda haver ocorrido tiroteio duradouro no tempo da revolução acreana. Coisa de quarenta mortos. Só.
Ademais, a tia velha, devota de São Sebastião de Xapuri, corria por outra raia e punha fé numa entidade espiritual, o caboclinho da mata, segundo ela, também protetor da família contra todos os perigos e a favor de barrigas bem cheias e meninos gordos.
Todos os dias, apesar do santo padroeiro, a tia ia aos pés da cajazeira e lá depositava um copo de pinga em honra do caboclinho. Na manhã seguinte, então, a cachaça era buscada e já não tinha mais nenhum cheiro porque, segundo a parenta, a entidade teria vindo e bebido a parte mais importante da aguardente de cana… Todos acreditavam nessa lorota, e não apenas os seringueiros amazônicos de todos os recantos e de uma forma geral.
Trancados no grande quarto, cujas frestas eram tampadas com folhas de revistas velhas, devido o ar da noite, corriam soltas as histórias sobre os espíritos perambulantes. A avó, uma das mais exímias contadoras de histórias de alma, não se furtava a um único detalhe, para que os menores tivessem ainda mais medo das coisas do outro mundo.
– Uma vez – dizia a avó – uma tia minha, lá no Ceará, costumava conversar com uma vizinha através de um buraco redondo na parede de taipa. Aí, o pessoal da casa ao lado se mudou para um sítio. Foi quando, por volta do meio dia, ela passava ali por perto e lá viu um olho de tamanho descomunal, na medida de uns quatro olhos humanos. Na mesma hora, a fenda assombrosa foi tampada e, por um bom tempo, a história foi sendo contada em todas as casas e, onde haviam as tais brechas, estas eram imediatamente fechadas para o bem estar da comunidade da Serra do Baturité.
Essa mesma tia das antigas, certamente uma mediúnica, de outra feita, cansada e enjoada de ver apenas as almas das pernas para cima, pediu a Deus que lhe mostrasse ao menos os pés de um desses fantasmas recorrentes. Deitada a uma rede, ela fechou os olhos e, quando os abriu, viu algo em torno de umas duzentas botas marchando como um pelotão de soldados em formatura. Valei-me!
Numa dessas noites, o quarto comportava umas oito pessoas, incluindo os três adultos. Arrepios iam e vinham por causa das histórias pavorosas. Foi quando, de repente, ouviu-se um terçado dos grandes que batia forte, retinindo, na paxiúba do assoalho do paiol, ao lado da barraca principal. Pouca gente dormiu, incluindo o menino magro que, manhãzinha, foi conferir e nenhuma marca ou golpe havia.
Uma vez, depois da janta à base de paçoca de jabá com baião de dois e chá de capim santo, a avó tocou pra frente outros relatos:
– Ah, sim! … Lá no Baturité, um dia, mamãe me mandou ir a um quintal vizinho buscar chicórias com as quais temperaria o feijão com banha. A casa era velha e grande e estava fechada há alguns dias. Lá, bem rente à raiz de um pé de bredo estudante, havia grande quantidade do condimento. Aí, eu me abaixei e comecei a catar. Foi quando ouvi o pigarro de alguém que estava carregado de catarro até os ossos. Em seguida, um arrastado de chinela de couro na madeira começou a vir no meu rumo, só o som… Eu dei no pé e demorei uns dois anos para conseguir passar na frente da casa, sem para lá olhar, é claro.
– Aí, uma tia minha, que morava lá pras bandas do sertão – continuava a avó – estava tirando um sono depois do almoço. O marido estava na lavoura e ela, sozinha em casa. Veio, então, um barulho de panelas e ela foi à cozinha ver o que estava acontecendo. Lá estava tudo no lugar certinho. De volta, quando sentou novamente na rede, começaram a catar feijão sobre uma pia de zinco quando a dela era, na realidade, feita de madeira.
Mais tarde, depois das cinco, quando ela, na calçada, contava o ocorrido, ouviu na casa ao lado o barulho de grandes pedras que corriam pelo longo assoalho de madeira, como se alguém as jogasse. Cheia de coragem, de posse de uma chave que lhe deixara a tomar de conta da casa o vizinho viajante, abriu a porta e lá não encontrou nenhuma pedra, de tamanho algum. O que ela viu é que, naturalmente, havia um sem número de paredes de pequenos cômodos, o que impossibilitaria que pedras rolassem por tanto tempo… Coisa de louco!
Na verdade, a tia velha e a avó, cearenses e dadas a essas histórias de alma, como sempre acontecia naquele tempo, deixaram toda uma geração medrosa com relação à realidade ou irrealidade de eventos como os relatados neste espaço.
O medo existia, sim, até mais ou menos o menino se meter a macho. Aí, o cabra começava a andar em festa e, depois, nas casas das namoradas, em ruas escuras e cheias de buraco. Ora, pois. Rapidamente o medo desaparecia, porque havia ainda a necessidade de voltar do forrobodó já com as luzes da cidade apagadas. Fazer o quê? Ou a língua ou o beiço!
– Ou vira macho ou fica em casa e nenhuma moça há de querer namorar cabra frouxo. – Era o que dizia a avó cheia da coragem que só os cearenses dizem ter; da boca pra fora, é claro.
CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO é escritor e autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero, ou pelo e-mail [email protected] >