A demanda da medicina tradicional chinesa e de outros países asiáticos está desencadeando uma nova onda de caça ilegal em larga escala de onças (Panthera onca) nas florestas da América do Sul. Segundo reportagem da BBC Brasil, entre 2014 e 2016 foram apreendidos na Bolívia 262 dentes, o que equivale a pelo menos 65 felinos abatidos.
Os contrabandistas, alguns deles nacionais chineses que estão indo a campo efetuar a compra pessoalmente, chegam a pagar cerca de 100 dólares (R$ 342) por cada dente. No mercado regional asiático cada presa pode custar até 1.700 dólares e na China esse preço sobe para até 5.000 dólares. Uma parte muito cobiçada da onça é o crânio, que pode valer até 10.000 dólares, mas os traficantes também retiram a pele e o pênis no caso dos animais machos.
Segundo Rodrigo Herrera, assessor da Direção Geral de Biodiversidade de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente e Água (DGBAP) do governo boliviano “com o abate de uma única onça, um agricultor pobre pode obter até 2.000 dólares”, o que é muito dinheiro em um país onde o salário mínimo equivale a 290 dólares.
Suspeita-se que os dentes de onça sejam exportados para a Ásia para uso em tratamentos medicinais tradicionais ou mesmo como amuletos ou na fabricação de joias. Na medicina, os ossos e os dentes da onça são usados para fortalecer o corpo humano e tratar dores, enquanto que os órgãos sexuais são usados no preparo de supostos medicamentos usados como afrodisíacos ou para tratar de problemas relacionados com a fertilidade.
A ONG boliviana Fobomade acredita que o número de animais mortos deva ser muito maior. O governo boliviano acredita que a atividade também esteja acontecendo em países vizinhos, inclusive o Brasil. Consultado, o IBAMA negou ter havido apreensão de presas de onças nos últimos anos, mas suspeita que os contrabandistas devam estar operando no país. No Brasil, a maioria dos casos ligados ao abate ilegal de onças ainda está relacionada com a expansão da fronteira agropecuária – as onças são mortas porque abatem animais de rebanhos bovinos criados extensivamente em áreas próximas de florestas.
Na Bolívia os animais estão sendo caçados pelos próprios contrabandistas, que aliciam indígenas e pequenos agricultores para ajudar no abate. Já foram registrados casos de contrabandistas anunciarem em rádios de pequenas cidades que estarão visitando as mesmas para adquirir as presas.
Segundo técnicos do órgão de defesa ambiental boliviano (DGBAP), os contrabandistas são em sua maioria de origem asiática e geralmente permanecem apenas um dia em cada cidade efetuando as compras. Em uma ocasião policiais da cidade boliviana de Rurrenabaque se disfarçaram de vendedores e conseguiram efetuar a prisão de dois contrabandistas de origem chinesa.
Autoridades da Direção Geral de Biodiversidade de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente e Água do governo boliviano acreditam que a crescente presença de cidadãos chineses na Bolívia também pode estar por trás desse aumento no comércio ilegal de presas dos felinos.
A concessão de um grande número de obras públicas para empresas chinesas por parte do governo de Evo Morales nos últimos anos provocou um forte aumento da imigração de chineses para a Bolívia: de 2.624 em 2011, o número passou para 12.861 em 2016. Esse aumento acentuado de residentes chineses provavelmente “criou um mercado local” para as presas de onças, causando uma disparada no preço.
A caça ilegal de onças na América do Sul na atualidade parece seguir o mesmo padrão que ocorreu com a caça ilegal de tigres na Ásia no passado. Era comum o uso de diversas partes dos tigres abatidos na medicina tradicional asiática. Mas a virtual extinção desse animal levou a um banimento da prática pela maioria das associações de medicina tradicional asiática na década de 90.
Técnicos do IBAMA acreditam que a caça ilegal de onças na América do Sul é resultado da dificuldade na obtenção de material de felinos asiático. Isso explica o aumento na busca do mesmo material de outros felinos na região, especialmente a onça. A ONG Traffic, que atua investigando o tráfico ilegal de animais no mundo, denunciou o abate de onças com esse objetivo no Guiana e no Suriname, onde dois casos concretos de cidadãos chineses envolvidos com a caça ilegal de onças foram registrados.
A caça de animais silvestres para a comercialização de peles e couros na Amazônia abasteceu grande parte do mercado mundial durante cerca de um século (até meados dos anos 70) e foi responsável pelo abate de milhões de mamíferos e répteis. As ‘peles de luxo’ ou ‘fantasias’, usadas na confecção de vestimentas luxuosas, eram extraídas dos gatos maracajá-açu (Leopardus pardalis) e maracajá-peludo (L. wiedii), da onça pintada (P. onca), da ariranha (Pteronura brasiliensis) e da lontra (Lontra longicaudis), e alcançavam os maiores preços. Um casaco de luxo de maracajá-açu exigia aproximadamente oito peles da espécie, de maracajá-peludo, entre 12 e 14, e de onça-pintada, cerca de três ou quatro peles.
No Acre, a caça ilegal para a extração de peles foi maior nos rios Iaco (Sena Madureira), Moa (Cruzeiro do Sul) e Envira (Tarauacá e Feijó). Em 2008, durante uma excursão ao rio Chandless, tivemos a oportunidade de ouvir o depoimento pessoal de um ex-caçador profissional de gato-maracajá que caçava os animais para vender as peles para comerciantes peruanos no alto rio Chandless. Se for verdade o que nos foi contado, me espanta que ainda existam gatos-maracajá na natureza. Mas tudo cessou com a proibição formal e moral do uso de peles animais como vestimentas de luxo na Europa e Estados Unidos.
Em relação às onças e a recente escalada em sua caça ilegal, não sabemos se a proibição ou a condenação moral do seu uso funcionará. Temos nossas dúvidas, afinal o uso medicinal mais frequente na Ásia é mais apelativo e, para os que acreditam na medicina chinesa tradicional, pode salvar vidas. Por isso, estamos seguros que muitos milhões de chineses acreditam que suas vidas valem muito mais do que a de um animal selvagem das nossas florestas. Será que nossas onças terão alguma chance de sobrevivência?
Para saber mais:
– Mercado chinês ativa tráfico de presas de onça-pintada na Bolívia. Jornal do Brasil, 16/04/2018.
– Medicina tradicional asiática ajuda a promover caça ilegal de onça na Amazônia. Folha de S. Paulo, 13/12/2016.
– O comércio internacional de peles silvestres na Amazônia brasileira no século XX, de autoria de A.P. Antunes, G.H. Shepard Junior e E.M. Venticinque, publicado na revista Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v. 9, n. 2, p. 487-518, 2014.