Na última quinta-feira, 12 de abril, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Acre (OAB/AC) aprovou por unanimidade o parecer conjunto da Comissão da Diversidade Sexual e da Comissão de Assuntos Legislativos que concluiu pela inconstitucionalidade formal e material do PL 03/2018, Estatuto da Vida e da Família, aprovado no último dia 5 de abril, pela Câmara Municipal de Rio Branco.
O pedido pela inconstitucionalidade formal e material do Estatuto da Vida e da Família será encaminhado para a prefeita do município, Socorro Neri.
Confira abaixo, na íntegra, as razões jurídicas do trabalho técnico da OAB/AC que levou ao parecer:
- O PL 03/2018 denominado Estatuto da Vida e da Família possui vício de INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL, art. 22, I, da Constituição Federal de 1988, pois, segundo o texto magno, só a União compete, privativamente, legislar sobre direito civil.
- O PL 03/2018 denominado Estatuto da Vida e da Família possui vício de INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL no art. 2º, caput e parágrafo único e também no § 2º do art. 11.
2.1 PL nº 3/2018, Art. 2, in verbis:
Para os fins desta lei, reconhece-se como família, base da sociedade, credora de especial proteção, em conformidade com o art. 226 da Constituição Federal, a entidade familiar formada a partir da união de um homem e de uma mulher, por meio do casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos.
O texto acima do PL possui inconstitucionalidade material sob o seguinte argumento da doutrina, da jurisprudência e da legislação infraconstitucional (lei maria da penha), fontes do direito, nos seguintes termos:
Na situação em tela, extrai-se de uma simples leitura do direito posto que em nenhum momento o texto constitucional teve a pretensão de estabelecer o conceito de família. Quando consigna ser a família a base da sociedade, lhe conferindo especial proteção estatal e reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, assim como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, o legislador está apenas enumerando em rol exemplificativo formas de famílias já estabelecidas na sociedade e que em textos constitucionais pretéritos não foram expressamente mencionadas.
A Lei Fundamental deve proteger todas as formas de se constituir família, sem a necessidade de ser taxativa em um ou alguns modelos familiares, pois, quem deve dizer qual a melhor forma de se organizar nesse núcleo doméstico é a própria pessoa, ou seja, a comunidade.
A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. (…) Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. (…) A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice (STF, ADPF 132 e ADI 4277, Rel. Min. Ayres Britto, 2011).
É consenso na doutrina e na jurisprudência que o princípio da igualdade pode ser usado para limitar e nortear o legislador e o intérprete das normas jurídicas, no sentido de que leis e condutas contrárias à igualdade são vedadas e não albergadas pelo ordenamento jurídico.
Em síntese, o que defendemos, tomando por base os fundamentos em que a República Federativa do Brasil foi constituída, é que o conceito de família hoje deve ser pensado e, nesse sentido, também a implementação de políticas públicas, levando em consideração a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, o respeito às diferenças, a solidariedade familiar, o pluralismo de entidades familiares, a proteção integral a crianças, adolescentes, jovens e idosos, a proibição do retrocesso social e a afetividade, sob pena de que qualquer ato contrário a esses postulados não ingresse no ordenamento jurídico ou seja dele extirpado, por não coadunar com a finalidade do Texto Magno e sofrer, portanto de inconstitucionalidade por vício material.
2.2 Projeto de Lei 3/2018, § 2º do art. 11, in verbis:
A formação do conselho a que se refere o § 1º desde artigo, será composto dos seguintes membros: Associação dos Ministros Evangélicos do Acre – AMEACRE, Diocese de Rio Branco, Grande Loja Maçônica do Estado do Acre, Federação Espirita do Estado do Acre, Conselho Tutelar de Rio Branco e Promotoria da Família – MPEAC.
Sobre este parágrafo, as razões jurídicas de Inconstitucionalidade Material recaem nos seguintes temos:
O neoconstitucionalismo é a abertura do constitucionalismo aos influxos da moralidade crítica”. A partir desta frase, o neoconstitucionalismo representa uma abertura e uma reaproximação do direito e a moral. É entender que a moralidade influencia tanto a formação quanto a interpretação do direito.
O termo “moralidade crítica”, em especial, o termo “crítica” tem por objetivo dar destaque a uma moralidade que não é uma moralidade setorizada ou permeada por uma ideologia ou por uma religião. Ou seja, não é uma moral cristã.
É uma moralidade definida a partir de critérios racionais. Logo, o sentido de moral aqui não pode ser entendido como uma moral cristã ou de qualquer tipo de vertente religiosa. Moralidade para o atual Direito são valores do que se considera certo e errado diante de argumentos racionais que permeiam a sociedade brasileira.
Ressalte-se, portanto, que a moral empregada no Projeto de Lei nº. 003/2018, sob o jugo do manto familiar, em nada se assemelha com a moral da força normativa da Constituição de 1988.
Outra questão a ser considerada é a laicidade do Estado Brasileiro. Portanto, este não pode se sujeitar a determinadas convicções religiosas como matriz de orientação para suas decisões políticas, pois tal prática violaria o princípio da laicidade. Segundo Bezerra, “[…] a laicidade que acaba sendo uma garantia que assegura direitos de liberdades individuais e coletivos a todos os cidadãos […]” (BEZERRA, 2014, p. 54).
A partir desse princípio, uma nação precisa garantir simultaneamente a liberdade de todos e, ao mesmo tempo, a de cada um. Logo, a laicidade distingue e separa o domínio público — local em que se exerce a cidadania — e o domínio privado — onde se exerce as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção).
Desta forma, o espaço público — em especial os programas oficiais — devem incluir a todos de forma indivisível. Logo, “nenhum cidadão ou grupo de cidadão deve impor as suas convicções aos outros” (BEZERRA, 2014, p. 54) nem se sobrepor aquelas elegidas em programas oficiais, sejam públicos ou privados.
Em outras palavras, o Estado não deve tomar decisões políticas a partir de um pensamento religioso para agradar uma determinada convicção religiosa. Ato que também violaria a própria liberdade religiosa. Portanto, é inconstitucional vincular programas oficiais a matrizes de orientação de domínio privado (seja religioso, moral ou sexual).
Ainda nessa esteira, sobre a composição do Conselho da Família (art. 11, § 2º, do Projeto de Lei Municipal nº. 003/2018), ao que se refere aos representantes religiosos, entendemos que a forma como ele está distribuído é discriminatória e fere a laicidade do Estado. A discriminação ocorre por incluir apenas as religiões Católica e Evangélica, sendo que no Estado do Acre há outras matrizes religiosas (religiões ayahuasqueiras e de matrizes afro-brasileiras, dentre outras). Outrossim, a laicidade do Estado está violada por não incluir demais entidades que representam a sociedade civil, a exemplo da comunidade LGBTI.
Esses são, portanto, os argumentos que embasam nossa manifestação pela inconstitucionalidade formal e material do Projeto de Lei Municipal nº. 003/2018 que dispõe sobre o Estatuto da Vida e da Família no âmbito do município de Rio Branco – AC.